UOL Viagem

25/08/2008 - 18h53

Sangue, suor e lama: uma jornada pela selva do Laos

MARCEL VINCENTI
Colaboração para o UOL,
da Área de Proteção Nacional Nam Ha

Fotos Marcel Vincenti/UOL

A Área de Proteção Nam Ha, no Laos, se estende por 222.300 hectares

A Área de Proteção Nam Ha, no Laos, se estende por 222.300 hectares

O xamã do vilarejo Nam Lai, no norte do Laos, não precisa de pompa para falar com o outro mundo. Agachado sobre o chão lamacento da floresta, uma galinha morta nas mãos, ele tenta acalmar os espíritos que têm causado as dores de estômago de uma criança. O ritual pede sangue e oração. Um porco foi degolado e, a seu sacrifício, juntam-se palavras dotadas de supostos poderes curativos.

A cerimônia é demorada e, enquanto o xamã faz seu trabalho, familiares e amigos se reúnem dentro da casa do enfermo para tomar lao lao, a aguardente produzida nestas bandas do mundo. O menino doente está apático. O idoso a seu lado acende um cachimbo de ópio e fica mais apático ainda. O resto das pessoas, porém, encaram esse processo de cura como um grande evento. Não há dúvida. Estou em uma tribo akha.

Andei cinco dias dentro da Área de Proteção Nacional Nam Ha para chegar aqui. Trata-se de uma zona florestal de 222.300 hectares, habitada por duas dezenas de minorias étnicas do Laos, cada uma com seus costumes, idioma e superstições. A selva as une, caminhos cheios de lama as separam. Os akha, com sua cultura capaz de fascinar e assustar em iguais medidas, são o grande objetivo da jornada.

Sangue...

O nascimento de gêmeos dentro de uma vila akha pode ser o prenúncio de vários desastres. Colheitas de arroz irão fracassar, doenças varrerão a comunidade, o fim dos tempos chegará. Os bebês, portanto, devem ser mortos pelos pais, a casa onde nasceram, incinerada, e ambos os progenitores têm que se isolar na selva por três meses. É isso mesmo. Quem me fala todas essas coisas, deitado em sua maca, fumando um cigarro, é Zong Piaw*, o xamã do vilarejo Nam Lai. (*Seu nome, carente de forma escrita, assim se pronuncia.)

Há cinco anos, ainda segundo ele, um funcionário do governo foi até o vilarejo comunicar que tal prática estava proibida. A solução encontrada pelos líderes locais foi simples, ainda que a contragosto: entregar as crianças ao Estado. Os pais, entretanto, ainda têm que queimar sua casa e se refugiar na selva.

Meu guia —Pet Chantaporn, um jovem de 23 anos da etnia tai lue— me traduz essas palavras como se nada fossem. Eu, por minha vez, tento não traduzir o choque em meu rosto com tamanho relato. "Bem-vindo à selva" é a única coisa clara que consigo pensar. E tudo retorna ao começo da trilha, quando ponderei essa frase pela primeira vez.

...suor...

"Havia uma ponte aqui", me diz Pet, com uma cara de interrogação um tanto preocupante. Dez minutos não haviam corrido desde que a trilha começara, e já teríamos que nos enfiar dentro de um desses rios barrentos do Laos. A ponte que ligava uma margem à outra —talvez não fosse nada mais que um tronco de árvore— havia sido levada pelo alto nível da água. Estamos no mês de agosto, época de chuvas nessa região do mundo. Os rios estarão elevados e violentos, e a trilha provavelmente será um belo show de esqui na lama.

Pet cruza os três metros de forte correnteza com algum esforço. Sinto que esse é o portal de entrada para uma semana em que irei suar e me sujar bastante. Depois dessa travessia, não há mais volta. Entro na água, a água marrom e espumosa batendo com força em minha cintura. Perco o equilíbrio uma, duas, três vezes, minha pesada mochila a me projetar para dentro do fluxo. O chão está cheio de pedras, algumas pegando carona na corrente e se chocando contra minhas canelas. Consigo, por fim, andar o suficiente, alcançar a mão de Pet e ser içado para fora desse perigoso desafio. Sim, é a selva. Daqui para frente, a mata fechada será o cenário de nossa estreita e sinuosa trilha.

A floresta do Nam Ha foi estabelecida como Área de Proteção Nacional em 1993, em uma tentativa do governo do Laos de controlar a caça predatória e o desmatamento praticados pelas tribos da região. É uma zona dominada em grande parte por florestas secundárias, muito rica em fauna: abriga 33 mamíferos (tigres e leopardos entre eles) e 288 espécies de pássaros. A presença humana é também marcante. Nas 104 vilas tribais existentes na área vivem desde os tai dam (povo com raízes na China e grandes produtores de seda) até os lanten (cujas meninas, ao atingir a puberdade, têm que raspar as sobrancelhas e adotar um corte de cabelo esquisito).

Irá demorar três dias, porém, até que cheguemos à primeira comunidade akha. Cruzar o rio foi só o primeiro passo de uma caminhada de 70 quilômetros, a ser completada daqui a uma semana. Começa a chover torrencialmente e temos que subir e descer barrancos cheios de trechos escorregadios. Pet vai à frente, colhendo o nosso almoço pelo caminho: gengibre, broto de bambu, cardamomo. Eu, por minha vez, estou mais preocupado em arrancar das minhas pernas as primeiras sanguessugas da viagem. Que bicho nojento. Com seu corpo marrom e gosmento, elas expelem um anticoagulante assim que grudam suas ventosas em nós. Arrancá-las não resolve o problema. A ferida continuará a sangrar por muito tempo.


Aranha de aspecto bizarro encontrada na Área de Proteção Nam Há; foram dias de caminhada para chegar a tribo akha
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Andamos três, quatro horas embaixo de chuva, o verde das árvores cada vez mais opaco, a atmosfera da floresta cada vez mais lúgubre. O potente zunido da cicada —um inseto alado do tamanho de um rato encontrado por aqui— é nossa música de viagem. Distraio-me com todo esse cenário, escorrego na lama e caio no barranco ao lado da trilha. Vou deslizando até parar em uma árvore que resolveu nascer no meio do caminho. Que sorte, estamos na floresta!

...e lama

Os laocianos gostam de fazer bolinhas de arroz com as mãos, passá-las em pimenta moída, molhá-las depois em algum ensopado (uma vez foi sangue de pato) e mandar a receita goela abaixo. E isso no almoço, no jantar e no café da manhã. Turbinados com tal alimento, damos início a um iluminado segundo dia. Dormimos em uma cabana de bambu no meio da mata, e o banho no rio foi uma aventura. A correnteza quase me levou embora algumas vezes. Tudo, porém, parece tranqüilo. Caminhamos três horas em terreno plano, terra batida, as lindas e imponentes árvores da Nam Ha a nos proteger dos raios solares. O céu está azul e os pássaros cantam.

A coisa parece um passeio no parque, quando, de repente, ploc! Há lama até o meu joelho. Há lama até o fim do horizonte. E, no Laos, há que se acreditar em teorias da conspiração: começa a chover. Andar torna-se um processo de enfiar um dos pés na lama (ploc!) e tirar o outro do buraco anterior (ploc!) com muito cuidado, pois os sapatos sempre ameaçam ficar para trás. Metade do meu corpo está marrom e a outra metade está molhada. E engana-se quem pensa que somos os pioneiros do dia. Um búfalo passou aqui antes de nós e deixou pelo caminho uma trilha de matéria fecal verde-musgo."It´s only shit!", grita Pet lá da frente, com seu ótimo inglês.

A diversão leva duas hora e meia. Ao final, chegamos à margem do rio Mat, onde tomo o melhor banho da minha vida. Há um sentimento de expectativa no ar: amanhã visitaremos nossa primeira vila akha.

Povos primitivos

O vilarejo Nam Mat é uma visão que destoa do resto da floresta. Suas casas de bambu e sapê, assentadas no clarão de terra batida, são uma pincelada cinza no mundo verdejante que nos rodeia. As árvores ao redor da comunidade foram cortadas e enormes arrozais dominam o cenário.


Vilarejo akha: casas de bambu e muitas crianças; os akha são uma das mais originais minorias étnicas do Laos
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Dentro da vila, crianças correm nuas no meio de porcos, galinhas e cachorros, gritando suas brincadeiras no indecifrável idioma akha. Adolescentes e mulheres, com seus bebês amarrados às costas, sentam-se em grupos no chão para descascar sementes de cardamomo ou cortar lenha. Os homens as ajudam, mas parecem querer trabalhar menos. E todo esse cotidiano segue protegido por um curioso monumento erguido na entrada da comunidade: o law ka, portal de madeira onde habitam alguns espíritos ancestrais da aldeia.

Os akha são uma das mais originais minorias étnicas do Laos, onde somam cerca de 66 mil pessoas. Estudiosos crêem que eles tenham chegado à região entre o século 16 e 17, vindos da província de Yunnan, na China. Seu idioma, parte da família lingüística sino-tibetana, não possui forma escrita. Suas tradições e crenças animistas são transmitidas oralmente de geração a geração, e é impressionante como tal cultura se mantém preservada.

As mulheres são insuperáveis quando o assunto é vestimenta. Ostentam chapéus ornamentados por moedas de prata, lantejoulas de alumínio e coloridos fios de lã. As que não andam com os seios à mostra, usam vestidos pretos cuidadosamente enrolados no corpo. Uma visão cheia de elegância, mas que não consegue ocultar as más-condições de vida desse povo.

As vilas akha praticam agricultura de subsistência (apesar de proibido pelo governo, algumas famílias também cultivam papoula, de onde extraem seu ópio de cada dia), mas não acessam com muita freqüência os serviços básicos. O chefe da vila Nam Mat me convida para almoçar em sua casa (a melhor casa da vizinhança, vale dizer) e posso conhecer um pouco da realidade local. Ele me conta que, em Nam Mat, há 32 casas, onde hoje vivem 184 pessoas. Sessenta e sete delas têm menos de 12 anos, mas apenas 20 vão à escola. O resto, diz ele, têm que trabalhar com os pais nas colheitas do dia-a-dia.

Os pequenos parecem felizes, mas é justamente quando sorriem que seu real estado de saúde vem à tona: arcadas dentárias em petição de miséria. Esquistossomose (barriga d´água) é outra mazela que deforma a vida no povoado.

Nam Mat, vale dizer, é uma vila akha mais "desenvolvida" que as outras. Não tardo em descobrir que, aqui, estamos perto da estrada. A tribo não tem eletricidade, mas possui acesso fácil à cidade de Luang Nam Tha, onde se pode encontrar comércio e hospital. Sempre que alguém se sente mal, porém, o xamã é o primeiro a ser chamado.



Mulheres lanten têm que raspar as sobrancelhas quando atingem a puberdade; região tem 104 vilas tribais
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Entre Nam Mat e Nam Lai

E aqui estamos de novo. Quinto dia de viagem. O xamã do vilarejo akha Nam Lai degolou um porco, quebrou o pescoço da galinha e, com o ritual, tenta curar as dores de estômago de uma criança. Foram dois dias de trilha selva adentro desde que deixamos a vila Nam Mat: sete horas de caminhadas diárias, sempre um rio perigoso a ser cruzado, sempre uma sanguessuga asquerosa a ser arrancada da perna. Frustra-me o fato de ser impossível ver qualquer dos mamíferos que habitam a Nam Ha. Os únicos seres vivos que aparecem no caminho são os de perfil indesejável, como aranhas e cobras.

O contato humano, no entanto, é cheio de possibilidades. Quando a floresta se abre para os arrozais, cruzamos com mulheres da etnia tai dam dando duro na colheita, em um quadro sempre associado ao Sudeste Asiático: todas ostentam os tradicionais kup, aqueles chapéus com forma de disco voador muito vistos em filmes sobre o Vietnã. Vários vilarejos khmu, um dos povos nativos do Laos, também se espalham pela área.

Os akha, contudo, parecem insuperáveis. A cerimônia do xamã é demorada e, no meio tempo, olho para as pequenas casas de bambu que, elevadas por postes de madeira a dois metros do solo, destacam-se na paisagem da vila. "São love nests (ninhos de amor)", me explica Pet.

Ele conta que, quando completam 15 anos, os meninos akha adquirem o direito de construir o seu próprio "ninho de amor" e ali levar as meninas da tribo. O sexo, aqui, não tem que vir somente após o casamento. Uma atitude liberal para um povo que parece parado no tempo.

Mas não há chance de refletir sobre isso. A voz do xamã silencia repentinamente. Ele acabou sua reza e estão trazendo o porco para dentro da casa. O animal é aberto, tem as vísceras arrancadas e, no fígado, os anciões, junto com o líder religioso, vêem se a sanha do espírito foi aplacada. Um sinal positivo com a cabeça e a celebração está oficialmente aberta. Para nós, a notícia: somos convidados de honra do banquete e teremos que comer o porco com todos os demais. Um pano branco, antes enrolado na galinha morta, está agora na cabeça do menino doente, que dorme tranqüilo.

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* O mochileiro Marcel Vincenti, 25 anos, partiu dia 9/4/08 para uma volta ao mundo de 12 meses e mostra todo mês em UOL Viagem o que tem visto por aí. Saiba mais

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