UOL Viagem

27/04/2008 - 22h00

Moorea, nobre selvagem do Pacífico, é primeira parada da Volta ao Mundo

MARCEL VINCENTI
Colaboração para o UOL
De Moorea, Polinésia Francesa

Marcel Vincenti/UOL

Vista aérea de Moorea, uma das mais belas ilhas da Polinésia Francesa

Vista aérea de Moorea, uma das mais belas ilhas da Polinésia Francesa

É dia 15 de abril de 2008 e na capa do jornal "La Dépêche de Tahiti" as principais notícias são: surfe, política e os artesanatos que o Rei do Coco é capaz de fazer. Estou na Polinésia Francesa há alguns dias e volto a dizer a mim mesmo: o Taiti e suas ilhas são o paraíso. A vida aqui é simples, a água, de um azul inédito, e os governantes -já que não podemos nos livrar deles- menos nocivos que os de certos países.

A vagar por esse imenso arquipélago do Pacífico Sul, escolhi a ilha de Moorea como breve refúgio. O lugar cheira a aventura. Montanhas com sítios arqueológicos a serem desbravados, barreiras de corais que transformam o oceano em transparentes lagoas, e um povo que, embora europeizado, ainda ostenta suas tatuagens e seu caráter exótico.

Marcel Vincenti/UOL
 
Subo em um dos raros ônibus que circulam pela ilha e tenho minha primeira surpresa: uma enorme taitiana está ao volante. Ela sorri e entoa um alegre "Ia ora na!" ("olá", ou "bom dia", em taitiano). O interior do veículo exala delicioso aroma. A tiare (flor polinésia de cheiro marcante e formas sutis) adorna a orelha de muitos passageiros. São homens e mulheres de compleição forte, pele morena e olhos negros e profundos. Ouvir o delicado francês, língua oficial da região, que sai da boca de tão corpulentos seres humanos é algo que beira o contraditório.

Moorea não é uma ilha esquecida pelo mundo. Faz parte da França e abriga turistas e hotéis de luxo. O tempo, porém, está a meu favor. É baixa temporada e o que me rodeia é o paraíso em seu estado bruto: praias desertas, trilhas vazias e o barulho do vento a balançar os coqueiros.

As caras da ilha

Teva Maui é um dos 14.300 habitantes desse exótico lugar. Dono de uma mão capaz de esmagar um coco e muitas tatuagens tribais, ele expõe, em bom inglês, sua visão de Moorea. "O povo daqui tira sua inspiração das montanhas, do mar, de toda essa terra. É por isso que somos felizes." O dinheiro chega ao bolso dos nativos pelos mesmos meios: Moorea é pródiga no plantio de abacaxis, na pesca e no trato aos turistas.

Resolvo desbravar um pouco esse éden tropical. Tenho como opções de locomoção: pedir carona, caminhar por estradas floridas, alugar scooter ou subir no ônibus perfumado. Uma vida nada difícil.

Percorro as baías de Cook e Opunohu --locais que, no século 18, sentiram o peso das âncoras dos primeiros navegantes europeus-- e encontro taitianos a saborear sua pacata existência. Uns tocam o ukulele (pequeno instrumento de cordas polinésio) enquanto vendem melancias; outros fumam, incógnitos, a famosa e ilegal pakalolo (a maconha local).

As baías são o ponto de partida para quem, como eu, pretende dar uma volta no vale do Opunohu, interior da ilha. A visão que tenho daqui parece haver sido esculpida pela criativa mão de uma criança: montanhas cujas formas carecem de lógica e transbordam em beleza. São os montes Rotui (899 m), Mouaroa (880 m) e Mouaputa (830 m), formações vulcânicas que abrigaram, antes da chegada dos europeus, uma antiga civilização polinésia.

A prova da existência de tal povo está nos marae, sítios arqueológicos com mais de 500 anos que podem ser achados no vale. Cruzo plantações de abacaxi, estradas de terra e paisagens fascinantes, e chego ao marae Tetiiroa, a duas horas de caminhada da Baía de Cook. Ele é constituído por estrutura retangular modesta, erguida com blocos de basalto. Em seu interior, cheio de árvores às quais eram atribuídas características divinas, está o ahu, altar reservado aos chefes da comunidade. Aqui se realizavam sacrifícios, preces e reuniões do povoado. Um local sagrado, cujos idealizadores foram dizimados pela predatória colonização européia.

Não há como negar que o domínio ocidental distorceu a cultura polinésia. Os taitianos são hoje majoritariamente cristãos --herança deixada pela maciça presença de missionários na região entre os séculos 19 e 20. As mulheres se apresentam com seu nome francês (Françoise, Albertine e afins) que, via de regra, permeia seu nome taitiano. E na escola, as crianças aprendem a usar o bonjour (bom dia) no lugar do ia ora na.

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Feitas com blocos de basalto, as marae fizeram a história da antiga polinésia
Muitos nativos, porém, continuam a enterrar seus mortos no jardim de casa. E a rebolar os quadris sempre que possível. A dança foi um dos traços culturais da Polinésia que resistiram às catástrofes do tempo. Um fato importante, visto que tal arte, apesar de banida durante a era missionária, está entre os aspectos mais importantes da vida local. Reza a história que as taitianas, em sinal de boas-vindas, se entregavam aos exploradores que aportavam no arquipélago. Elas usavam a música e seus movimentos como parte indissociável do ritual do sexo. No outro lado de Moorea, à beira-mar, tive a sorte acompanhar uma performance de otea, dança embalada por frenéticos batuques. .

Com cocos que cobrem os seios, barrigas à mostra, coroa de flores na cabeça e saias feitas de plantas nativas, um grupo de oito mulheres executava, ao som da percussão, um rebolado de extrema sensualidade. James Cook e companhia não esqueceriam estas ilhas tão cedo.

A ilha de Moorea parece ser bom refúgio para europeus desiludidos com a civilização ocidental. O escocês Ron Falconer, por exemplo, é um dos personagens mais interessantes que já conheci. Após dar a volta ao mundo em um pequeno barco, e morar quatro anos em uma ilha deserta, ele elegeu Moorea como seu último porto. Na entrada de sua casa se lê a placa "Final da Jornada" e uma pequena âncora talhada ao lado.

O escocês Ron Falconer pode se gabar. Ele realizou algo que 6,49999 bilhões de pessoas não vão fazer em vida: morou, durante quatro anos, em uma ilha deserta. Mais precisamente em Atol Caroline, uma pequena porção de terra no Pacífico Sul pertencente à República do Kiribati. Antes de tal façanha, Ron havia dado, entre 1975 e 1987, algumas voltas ao mundo a bordo de seu barco Fleur d´Ecosse, que ele mesmo construiu. Conheceu sua mulher, uma francesa com quem teve dois filhos, durante a viagem.

Marcel Vincenti/UOL
Depois de viver numa ilha deserta, Ron Falconer escolheu Moorea
O período em que viveu em Atol Caroline com sua família (1987-1991) virou livro, e foi lançado no Brasil pela Reader´s Digest com o título "Juntos na Solidão". É a história verídica de um Robinson Crusoé moderno, que buscou fugir da civilização a qualquer custo. Ron conta que, enquanto criava seus filhos, tinha de plantar e caçar seus alimentos, conviver com intempéries destruidoras e defender sua vida de nobre selvagem. E garante: tudo valeu a pena. Quando se mudou para o Taiti, após ser expulso do atol pelo governo do Kiribati, percebeu que seus filhos, então com oito e seis anos, não sabiam o que era dinheiro.

Hoje músico, Ron conta que escolheu Moorea pela exuberância de suas montanhas -que o fazem lembrar de sua cidade nas highlands do norte da Escócia. "Sempre quis passar minha vida fora da sociedade e viajar pelo mar. Me aposentei e elegi este local como meu último refúgio." Da janela da casa de Ron, eu vejo o Pacífico e entendo porque ele adotou tais águas como cenário de suas aventuras. Trata-se, afinal, do maior oceano do mundo, cheio de ilhas paradisíacas, ciclones e civilizações perdidas.

É também o Pacifico que dá origem às lagoas que rodeiam a ilha de Moorea. Protegidas por enormes recifes, elas exibem uma superfície cheia de gradações azuladas e um interior transparente e rico em vida marinha. Resolvo cair na água. Faatauira Solange Vaihiria, uma nativa que não economiza sorrisos, pede para que eu não me preocupe com os tubarões. Na lagoa, "eles não serão maiores que meus pés". Não me preocuparei: esse infinito mar é hoje meu território no meio do nada.

Alex Haddab é francês, filho de argelino, criado no Taiti e, em ótimo português, se define brasileiro. Eu estava na baía de Opunohu, o sol do Pacífico a queimar minha testa, quando peguei carona em sua picape. Alex não poderia ter escolhido profissão melhor. Ele faz tatuagens, arte extremamente arraigada nestas bandas do Pacífico. Nativos e turistas acorrem a seu estúdio em Moorea para marcar a pele com detalhados tribais, seja no braço ou nas nádegas. O português ele aprendeu com amigos brasileiros que vivem em Papeete, capital do Taiti. E me diz, em boa língua lusitana, que não trocaria Moorea por Paris nem se recebesse a "Mona Lisa" de presente.

Veja mais: Veja fotos de Moorea

* O mochileiro Marcel Vincenti, 25 anos, partiu dia 9/4/08 para uma volta ao mundo de 12 meses e mostra todo mês em UOL Viagem o que tem visto por aí. Saiba mais

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