Topo

Na região da Sicília, atrações te levam a um passo para trás no tempo

Vista geral da cidade de Geraci, na Itália - Chris Hardy/The New York Times
Vista geral da cidade de Geraci, na Itália Imagem: Chris Hardy/The New York Times

JANIS COOKE NEWMAN

New York Times Syndicate

31/12/2010 14h46

Nós estávamos na praça da cidade italiana de Castelbuono, aguardando pelos restos mortais da avó de Jesus. Estava quente. Estava escuro. Estava lotado. Nos últimos 45 minutos, meu namorado, Chris, e eu ficamos assistindo as procissões de monges encapuzados, carregando velas e estandartes pintados com imagens de santos, descendo os degraus do castelo do século 15 da cidade. Finalmente, após uma ensurdecedora queima de fogos, o relicário em forma de sopeira começou a descer as escadarias, carregado por um grupo de homens locais trajando ternos escuros e padres vestidos de dourado.

Enquanto o relicário se aproximava, eu espiei pela abertura na sua frente, imaginando que veria um pedaço do fêmur da santa, uma lasca da tíbia. Quais eram as chances de que uma parte significativa da mulher cuja crença é de que seja a mãe de Maria viria parar em uma pequena cidade siciliana?

O que vi em vez disso foi um crânio. Cinzento, com talvez alguns poucos dentes.

A cabeça de Santa Ana.

A procissão com o crânio da santa pelas ruas é um ritual com séculos de idade, um evento regular em Monti Madonie, a paisagem montanhosa que se inclina da costa acima de Cefalù até as margens da estrada Catânia-Palermo. A Festa de Sant’Ana ocorre em julho, mas se fosse maio, nós veríamos as estátuas de 35 santos em procissão pela cidade vizinha, Gangi. Em abril, poderíamos ter participado da Festa da Mula em Isnello. Nesta região rural, onde as cidades ficam situadas como fortalezas no topo de montes escarpados, os rituais persistem mais do que em qualquer outra parte da Itália.

É este apego aos costumes que torna Monti Madonie especialmente atraente para os viajantes que desejam um vislumbre de um modo de vida tradicional (que está desaparecendo). Um vislumbre que pode incluir a cabeça não muito bem preservada de uma santa.

Uma das maiores promotoras deste tipo de turismo cultural é Carmelina Ricciardello, uma australiana nascida na Sicília que oferece visitas personalizadas com artesãos locais e aluga imóveis de férias em sua cidade natal, Sant’Ambrogio (que promove a Festa da Alcachofra Frita). O apartamento que ela arrumou para nós era rústico: o fogão utilizava botijão de gás e a pintura do teto estava começando a descascar. Mas a vista do Mediterrâneo da sacada estreita mais que compensava.

Carmelina leva a sério mostrar aos visitantes os costumes locais. Em nossa primeira manhã na cidade, ela insistiu que víssemos um pastor de cabras chamado Giulio fazer ricota de leite de cabra sob uma árvore. Na verdade uma árvore e um teto de metal corrugado; o restante era céu aberto e cabras. Giulio não falava inglês, mas isso não o impedia de falar conosco sem parar – sobre política, boates e cabras – enquanto preparava a ricota em um caldeirão preto sobre uma fogueira.

  • Chris Hardy/The New York Times

    Durante grande parte da Idade Média, Monti Madonie pertenceu à família Ventimiglia. Na foto, as pessoas se reúnem no Castello dei Ventimiglia, na cidade de Castelbuono

Giulio a moldou em um cesto de plástico, espremendo o excesso de água com seu punho. Então ele retirou colheres cheias de ricota cremosa, que comemos sob a árvore, acompanhada de uma bebida marrom e de sabor ligeiramente venenoso que Giulio jurava ser vinho.

Naquela tarde, Carmelina se ofereceu para nos levar para conhecer outro Giulio, este um colhedor de maná.

“Maná?” Chris perguntou.

“É um laxativo. Muito delicioso.”

Alguns especulam ser o mesmo maná que os israelitas bíblicos supostamente encontravam espalhado pelo chão enquanto vagavam pelo deserto. Na Itália, ele é colhido da seiva de freixos e a casa de pedra de Giulio é cercada por centenas dessas árvores, que vertem filetes de xarope branco em pequenos copos feitos das folhas de figo da Índia. Giulio nos mostrou as caixas de madeira onde ele seca os filetes de maná ao sol, até se parecerem com fios de espaguete. Sob uma cobertura de bambu, nós provamos alguns; eram doces e um pouco ceráceos. Giulio então nos serviu uma barra de chocolate maná seguida por um licor de maná chamado Man-Hu, que tinha um sabor medicinal suficiente para me lembrar de que eu estava bebendo um laxante.

No dia seguinte, Carmelina nos levou à cidade medieval de Gangi, para conhecer um falcoeiro chamado Domenico Vazzana. Em seu traje de falcoeiro – calças de cor creme, botas para cavalgar de camurça marrom, colete de couro – Domenico parecia extremamente vistoso. Também não atrapalhava estar montado em um garanhão branco e com uma grande ave de rapina em seu braço.

A falcoaria foi introduzida na Sicília no século 13 por Frederico 2º, e Domenico ainda se comunica com suas aves da mesma forma que os nobres faziam naquela época, em árabe. Com seus dentes, Domenico desatou o capuz de couro que cobria a cabeça da ave, então enviou o falcão para sobrevoar os campos com um comando levemente gutural. A ave voltou com o bico vazio e no final Domenico teve que desistir da caçada para preparar um sanduíche para sua filha de 4 anos.

No dia seguinte nós seguimos para o interior, dirigindo por estradas sinuosas que serpenteiam pela paisagem coberta de pequenos arbustos entre os vilarejos, uma área que foi transformada em parque regional em 1989. Durante grande parte da Idade Média, Monti Madonie pertenceu à família Ventimiglia, que coroava suas cidades no alto dos montes com castelos e igrejas. Nós paramos em duas das cidades mais bonitas: Petralia Soprana, onde comemos grandes pedaços de sfuogghiu, um bolo feito de ricota, chocolate e canela (uma atração da Festa das Massas); e Petralia Sottana, onde nos deparamos com uma festa espontânea nas ruas – meia dúzia de sicilianos vestidos de modo casual carregando um estandarte da Virgem e uma variedade de sacolas de compras de butiques de luxo.

  • Chris Hardy/The New York Times

    Igreja de Petralia Sottana, na região da Sicília, na Itália

Nós terminamos em Monaco di Mezzo, um endereço de turismo rural que é parte fazenda ativa, parte pousada. Seus prédios de pedra ficam em uma dobra da colina com nada ao redor, exceto vistas. Ao lado de sua piscina repleta de famílias italianas fica uma série de apartamentos com paredes de pedra e um restaurante com vigas de madeira, onde uma pele de javali estava secando no terraço. O jantar naquela noite foi uma fantasia locavore (consumo de alimentos produzidos no local) – caponata de berinjela da horta da pousada, azeite de oliva do pomar atrás dos estábulos, ricota das ovelhas, cujos sinos podiam ser ouvidos badalando além da colina seguinte, e vitela criada em uma fazenda de Monaco di Mezzo.

Na manhã seguinte, nós seguimos para a velha cidade de Gangivecchio para uma aula de culinária com Giovanna Tornabene, cujos livros de receitas de cozinha siciliana, escritos juntamente com sua mãe, ganharam dois prêmios James Beard. Giovanna dá aulas em uma abadia do século 14 de propriedade da família Tornabene desde 1856, um prédio de paredes cor-de-rosa com um pátio cheio de andorinhas. Sob sua supervisão, nós preparamos um macarrão com tomate cereja e flor de abobrinha, frango com passas (grande parte da culinária siciliana tem influência árabe), e uma torta recheada com amoras colhidas dos pomares de Gangivecchio. Depois nós comemos tudo no restaurante com muitas janelas da abadia.

Ao voltarmos para Monaco di Mezzo, nós paramos para ler uma das placas oficiais espalhadas ao lado da estrada. “Monti Madonie, berço de aromas e sabores antigos e genuínos.” Nós sentimos que era uma descrição precisa.

Tradução: George El Khouri Andolfato