UOL Viagem

24/09/2009 - 20h26

Voltando no tempo para a velha Inglaterra, gole por gole

HENRY SHUKMAN
New York Times Syndicate
Coisas estranhas vêm acontecendo na Inglaterra. Ainda cambaleando da dissolução do império nos anos após a Segunda Guerra Mundial, agora os ingleses descobrem que não são nem mesmo britânicos. Enquanto o estimado "Reino Unido" se divide nas partes que o constituem, os escoceses passam a ser claramente escoceses e os galeses, galeses. Mas quem exatamente são os ingleses? O que restou deles, com tudo, exceto a metade sul da ilha deles, tomada?

  • Chris Warde-Jones/The New York Times
Voltar no tempo para rastrear as raízes não ajuda. Primeiro vieram os celtas, depois os romanos, então os anglos, saxões, jutos, dinamarqueses. Invasão após invasão, até a conquista dos normandos. A identidade nacional inglesa apenas pareceu se estabelecer posteriormente, nas areias móveis do expansionismo, dos tempos elizabetanos em diante. O império pareceu selar isso. Mas agora há apenas a Inglaterra, meia ilha verde nos Mar do Norte, açoitada pela chuva, marcada por dois séculos de industrialização viciosa que degenerou em abandono, arruinada, como pensava D.H. Lawrence, pela "tragédia da feiúra", sua arquitetura abominável.

De todas as instituições inglesas, aquela com a qual contar seria o pub. Abrigo para os peregrinos de Chaucer, lar de Falstaff e Hal, trono da felicidade para o dr. Johnson, o pub -antro esfumaçado e espumante de alegria- é o útero da anglicidade, se algum lugar é. Mas no meio dessa crise de identidade nacional, o pub, a base da vida inglesa, uma vara fincada na fossa da história, tão velho quanto os saxões, está repentinamente morrendo e evoluindo em taxas iguais. Fechando em um ritmo de mais de três por dia, os pubs se tornaram tão raros que, pela primeira vez desde o Cadastro das Terras de Guilherme, o Conquistador, mais da metade das aldeias na Inglaterra não possui um. É raro um pub que ainda prospera, ou mesmo sobrevive, sendo o que visava ser: um estabelecimento para beber. A velha ideia de um pub como lugar de uma "sessão", um longo início de noite relaxante e alcoolizado, está morta.

Para se ter uma medida do estado atual do pub inglês tradicional - ou o que restou dele - eu decidi visitar na última primavera um canto de Cotswolds, no nordeste, onde desperdicei minha juventude, uma área repleta de vilarejos e cidades pitorescas, assim como - pelo que me lembrava - de pubs. Eu me perguntava: o que aconteceu com eles?

Chipping Norton, a cerca de 32 quilômetros a noroeste de Oxford, é uma cidade mercado clássica de Cotswolds, com suas casas de pedra, sua praça do mercado inclinada para baixo na encosta, com, no fundo do vale para o qual dá vista, um velho moinho de lã é famoso por sua chaminé enormemente alta. O pub mais conhecido e animado da cidade é o Chequers, uma série de pequenas salas densas de convivência.

Mas o pub pelo qual estou aqui é um de uma raça em extinção.

Subindo a colina a partir da praça principal fica o Red Lion. É um verdadeiro pub de uma velha cidade mercado: apenas uma pequena sala principal, com um velho em um banco (na noite em que visitei) bebendo lentamente quartilho após quartilho, com o fogo crepitando gentilmente na lareira, e uma barmaid ágil e animada brincando com dois jovens no bar. E nada para oferecer exceto bebida (na hora do almoço, você pode ter a sorte de encontrar um enroladinho de queijo.) Esse é um pub que não fez concessões com o passar do tempo. Com seu piso marrom de linóleo, a mistura de mesas, o alvo para dardos, a "Tia Sally" no fundo (um jogo peculiarmente divertido jogado apenas em Oxfordshire e três distritos vizinhos, envolvendo um manequim de madeira, um cachimbo de barro e muitos arremessos embriagados), esse lugar dificilmente mudou desde os anos 70, ou até mesmo desde os anos 50. O credo pode ser: se a cerveja é boa, o pub está cumprindo sua principal função.

Este aqui sobrevive com dificuldade do grande comparecimento de pessoas nos dias de feira na praça da cidade, a apenas 50 metros de distância, e pelo fato de ser uma das quatro dúzias de pubs de propriedade da cervejaria Hook Norton. Eu suponho que a cervejaria pode bancar um pub com movimento ocasional.

A pequena cidade vizinha de Hook Norton espalha sua luz por toda esta região. Ela é famosa porque sua cerveja é famosa. Uma pequena cervejaria independente de alguma forma não apenas sobreviveu, mas cresceu; é uma torre extraordinária, ao estilo Tudor, com seis andares de altura, construída nos anos 1880 na periferia da cidade, ainda alimentada basicamente por um magnífico motor a vapor no piso térreo.
  • Chris Warde-Jones/The New York Times

    Hook Norton Brewery é uma torre extraordinária, ao estilo Tudor, com seis andares de altura, construída nos anos 1880 na periferia da cidade


A Hook Norton é a minha cerveja favorita. Há duas cervejas principais, a Hooky e a Old Hooky, a segunda mais forte que a primeira, e uma série rotativa de cervejas sazonais. Ambas têm aquela claridade mágica, uma cor dourada escura que é a própria marca do interior inglês, e o mesmo sabor maravilhoso que nunca encontrei em nenhuma outra cerveja.

Eu sempre me perguntei se eu a amo tanto por ter sido a primeira cerveja que provei. Minha mãe costumava comprar as velhas garrafas marrons de um quartilho, mantendo algumas na despensa. Na adolescência nós éramos encorajados a abrir uma e despejar o líquido espumante nos copos na hora do almoço, para ajudar a descer a fatia de pão com queijo cheddar: uma refeição semelhante às dos pequenos proprietários rurais medievais que aravam as terras, como ainda era visível nas ondulações nos campos ao redor de nossa casa.

Mas toda vez, independente de quanto tempo se passasse desde a última vez que a provei, a Hook Norton me parecia rica e equilibrada como nenhuma outra cerveja do planeta.

"Dizem que está no líquido", disse Duncan Collins, gerente da cervejaria, quando a visitei poucos meses atrás. "É a água da nascente que vai nela. Mas, honestamente, eu não sei."

Ele me guiou pelos vários andares, passando por tonéis e tanques onde a cerveja é misturada, depois fermentada, até o topo, até um uma espécie de sótão parecido com pombal, cercado por persianas, com uma piscina gigante de cobre para onde até dois atrás a cerveja era sempre bombeada para esfriar. Em um canto distante do campo ao lado, os cavalos shire da cervejaria, com seus machinhos desordenados, estavam pastando. A cervejaria ainda os utiliza para puxar a carroça que entrega a cerveja aos pubs locais.

Um deles, na Hook Norton High Street, é o Sun Inn. Por que um bom pub é tão bom? Vá ao Sun na hora do almoço. Há uma mesa com quatro, outra com sete e vários rapazes no bar. É como estar em uma festa jovial, onde você não precisa conversar se não estiver com vontade. Há conversa sobre jardinagem -"Bem, eu sempre faço rodízio"- e um pouco de papo histórico local sério: "O problema é que eles simplesmente não tinham nenhum meio de subsistência".

Há mesas de madeira listradas espaçosas, luz leitosa vindo das janelas translúcidas e uma lareira queimando do outro lado da sala. E meu grande prato de peixe fresco com fritas (pelo equivalente a US$ 15) é suntuoso. Em meio ao baixo murmúrio da conversa relaxada, é possível sentir o conforto fácil, a felicidade, de seres humanos descansando. E com o velho arado pendurado no teto, o piso de azulejo e moitas de lúpulo entre as vigas, há a sensação de a história ser uma amiga desse método de relaxamento ser aprovado e endossado ao ser desfrutado por séculos. Você sente que é verdadeiro que os europeus -mesmo os ingleses- ainda sabem como viver.
  • Chris Warde-Jones/The New York Times

    É impossível entrar no Pear Tree Inn e não se sentir melhor: são mais de 200 anos de história


No próximo Pear Tree Inn, também um dos pubs da cervejaria Hook Norton, grinaldas de lúpulo estão penduradas sobre o bar, das vigas escuras do teto baixo. Uma fogueira crepita na lareira de pedra, impregnando o ar com um cheiro de madeira queimada. Do lado de fora, quase pressionada para dentro da estrutura de tijolos do século 18 deste pub simples e agradável, a pereira que lhe dá nome cresce além do prédio. Há um grande jardim nos fundos, para compensar o interior relativamente apertado. É um verdadeiro clássico, no fim da rua da cervejaria. Eu duvido que você possa entrar aqui e não se sentir melhor, independente do que esteja passando. O próprio ar é espesso com mais de 200 anos de alívio da alma. É tudo o que um pub deve ser: uma fábrica de misericórdia, um refúgio das preocupações da vida pós-industrial, um espaço fora do tempo mais conectado aos campos e fontes, um ciclo repetitivo de gerações, em vez dos problemas específicos de nosso tempo. Ele foi abrandado pela boa-vontade de diferentes eras.

Aqui você sente a verdade do que o "Guia do Bom Pub" tem a dizer: que em um bom pub, "você deve sentir-se não apenas feliz por ter vindo, mas que eles estão felizes por você ter vindo". Qual é o ingrediente mágico? Eles dizem que um pub pode ter todos os atributos, mas se o anfitrião ou a anfitriã não forem os certos, isso não transparecerá. Tudo depende dos proprietários.

Ironicamente, à medida que a riqueza da Inglaterra é gerada cada vez mais nas cidades, o gosto dos ricos parece se tornar cada vez mais rural. Há uma estranha simbiose acontecendo entre o "verde" como declaração de estilo de vida e um tipo de medievalismo-retrô. Pisos de tábua neomedievais, azulejos e ladrinhos, palha se possível, e comida e bebida que refletem a herança medieval e inerentemente rural -talvez seja aqui onde a identidade da nação possa ser protegida. Quanto mais local a comida melhor, independente dos consumidores percorrerem 160 quilômetros para almoçar e então voltar em Land Rovers beberrões de gasolina. Esta é a receita atualmente.

Essa é a fórmula do Kingham Plough, na cidade vizinha de Kingham, um pub que já ganhou uma estrela Michelin. Sua jovem chef Emily Watkins foi uma protegida de Heston Blumenthal, o cientista maluco da culinária, e conta com seus próprios banhos para cozinhar proteínas com precisão sublime -"48 graus", nosso garçom nos diz sobre o halibute, "e 54 graus para o lombo de carne de carneiro".

Ao lado da ciência, há um lance neomedieval. "Nós compramos animais inteiros", a chef me diz. "Do pé ao focinho." Foi então que descobri que tinha acabado de comer uma cabeça de porco como entrada, em uma espécie de empada chamada "Pressed Pork", que achei se tratar de carne de porco desfiada. Longe disso: é uma cabeça reduzida na fervura. Pode ser um pesadelo para vegetarianos, mas o halibute a 48 graus derretia na boca de forma impecável, e minha carne de carneiro super-rica, embrulhada em uma folha de couve lembrando um repolho em miniatura, estava maravilhosamente densa, suculenta e aromática -era na verdade uma mistura de peito e sobras picadas, assadas lentamente por horas. Eles conservam carne de porco em cerveja Hook Norton aqui, que então é curada na chaminé, seguindo uma receita vitoriana do antigo dono deste pub.

Grande parte do pub é dedicada ao restaurante, mas em uma grande sala de pedra é possível sentar e beber em vez de comer, caso queira. Há várias cervejas para escolher, incluindo a estrela local Hook Norton, e há um grande e intrigante cardápio no bar. Apesar da culinária elevada sendo servida, a atmosfera geral é mais de bistrô ou brasseria -um tipo de pub limpo, com as pedras lavadas e o piso de azulejo regularmente varrido.

Nenhum passeio pelas Cotswolds -pelo menos nenhum passeio feito por um fã de pub- seria completo sem uma visita ao vilarejo de Great Tew, um vilarejo medieval antes abandonada com uma grande casa em ruínas, agora restaurada, telhados de palha refeitos, repovoada e reenergizada, com uma escola, uma loja e um pub esplêndido, o Falkland Arms. Apenas a magnífica igreja frígida permanece deserta e infelizmente negligenciada.
  • Chris Warde-Jones/The New York Times

    Fachada do Falkland Arms, em Great Tew


Há 25 anos, um dos poucos prédios ainda ocupados era o pub do vilarejo. Como me recordo, dois velhos estavam sempre lá, cada um de um lado do bar. Era como entrar em um filme do Rei Arthur -o piso de pedra, as vigas escurecidas pela fuligem, o bar de madeira oferecendo dois chopes, e uma fileira de empoeirados garrafões empalhados de vinhos caseiros: damasco, ameixa, pêra. A palha cinzenta suja do teto estava esburacada e mofada. Hoje há um chef uniformizado na cozinha moderna, a palha é dourada e o lugar está se saindo como a aldeia: entrando no mundo das revistas de estilo de vida para a classe média. Ele pode ter perdido parte de sua autenticidade, mas ainda é um lugar encantador, com um jardim exuberante com vista para as gloriosas encostas das Colinas Costwold ao norte, além de comida de alta qualidade.

Ele também oferece uma boa seleção de cervejas, incluindo três da Wadworth, a empresa que agora é dona do pub -a famosa cerveja 6X, a Horizon Ale e a Henry's I.P.A. Outras três bombas de cerveja no bar estão disponíveis para cervejas convidadas como a Gravitas da Vale Brewery, na vizinha Buckinghamshire. Centenas de rótulos no bar atestam as diferentes cervejas convidadas que já passaram por ali ao longo dos anos (se você quiser provar algumas antes de escolher um quartilho, eles têm copos especiais para degustação). Como o pub anuncia em seu site: "Cerveja de Verdade, Comida de Verdade, Pessoas de Verdade. Um Pub de Verdade".

Para concluir minha visita a pubs tradicionais, eu segui até o King's Head, fora do vilarejo de Bledington, situado em uma casa de sidra do século 16, que agora foi despojada até um interior simples de pedra e madeira de acordo com o tipo de qualidade atualmente na moda. Além da Hooky, ele oferece o chope Notley Ale, da Vale Brewery ao leste de Oxford, assim como um cardápio sofisticado e 15 quartos. Há uma sala aconchegante de paredes de pedra nos fundos e uma grande sala de jantar com vigas baixas de madeira (cuidado ao deixar o pub, especialmente se teve uma noite bastante animada: o vilarejo conta com um arranjo incomum de pequenos canais que o cortam.)
  • Chris Warde-Jones/The New York Times

    O King's Head, em Bledington, tem chope, um cardápio sofisticado e 15 quartos


Se os pubs estão morrendo ou se transformando no que alguns deles eram antes - lugares que oferecem uma refeição e cama, como as velhas hospedarias (as hospedarias de outrora sendo os pubs de hoje) - é tranquilizador descobrir que tanto charme foi preservado, que a cerveja continua sendo tão boa quanto sempre e que, além disso, também é possível fazer uma tremenda refeição.

Servindo tradição no copo

North Oxfordshire fica no canto extremo nordeste das colinas Cotswold. É uma área melhor explorada por carro e fica aproximadamente entre uma e duas horas de viagem de Londres. A estrada M40 é a rota mais direta.

Há uma linha de trem regular da Estação Paddington, em Londres, para Banbury, assim como para Kingham, a cerca de 24 quilômetros a sudoeste, e também (via Reading) do Aeroporto Gatwick.

Onde beber

The Red Lion, Albion Street, Chipping Norton; (44-1608) 644-641. Horário de funcionamento: de segunda à sexta das 11h às 14h e das 17h30 às 23h; sábado, das 11h às 23h.; domingo, do meio-dia às 23h. Preço do quartilho: 2,70 libras (ou US$ 4,43, com a libra cotada a US$ 1,64) pela Hooky Best; 2,20 libras pela Roaring Lion, a amarga da casa.

The Sun Inn, High Street, Hook Norton; (44-1608) 737-570. Horário de funcionamento: dias úteis das 11h30 às 15h e das 18h às 23h (até meia-noite às sextas); sábado, das 11h30 à meia-noite; domingo, do meio-dia às 22h30. Preço do quartilho: 2,70 libras por uma Old Hooky.

The Pear Tree Inn, Scotland End, Hook Norton; (44-1608) 737-482. Horário de funcionamento: diariamente das 11h às 13h30. Preço de um quartilho: o Pear Tree oferece seis cervejas Hook Norton diferentes, variando de preço de 2,30 libras (pela Hooky Dark) a 2,80 libras por uma das cervejas sazonais do mês.

The Kingham Plough, na praça de Kingham; (44-1608) 658-327. Horário de funcionamento: diariamente, do meio-dia às 23h (22h30 aos domingos). Preço de um quartilho: 2,80 libras por uma Hereford Pale Ale, 3,20 libras por uma cerveja Cotswold.

The Falkland Arms, Great Tew; (44-1608) 683-653. Horário de funcionamento: segunda à sexta das 11h30 às 15h e das 18h às 23h; sábado, das 11h30 à meia-noite; domingo, do meio-dia às 22h30. Preço de um quartilho: 2,90 libras for uma 6X da Wadworth.

The King's Head Inn, na praça de Bledington; (44-1608) 658-365. Horário de funcionamento: dias úteis, do meio-dia às 15h e das 18h às 23h30; fins de semana, das 11h à meia-noite. Preço de um quartilho: 2,90 libras por uma Organic Stroud Ale.

Henry Shukman, um poeta e romancista inglês que vive no Novo México, Estados Unidos, é um colaborador frequente da seção Viagem do "The New York Times". Seu romance "The Lost City" foi publicado em maio pela editora Vintage.

Tradução: George El Khouri Andolfato

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