UOL Viagem

01/05/2008 - 14h31

Casas-museus de Neruda são viagem pelo mundo do poeta, pela cultura chilena e pelo século 20

ROGER MODKOVSKI
em Isla Negra, Valparaíso e Santiago do Chile
O poeta chileno Pablo Neruda (1906-73) gostava de morar bem -e ia muito além disso. Ele transformou suas três principais casas no seu país natal em verdadeiros santuários do culto (no bom sentido) à sua complexa personalidade. A visita às sossegadas moradas dele em Isla Negra, em Valparaiso (La Sebastiana) e na capital Santiago (La Chascona), hoje transformadas em museus, é uma saborosa viagem pelo universo do poeta, pela cultura chilena e pela história do século 20 -e com escalas também no Brasil.

Roger Modkovski/UOL
Cabeça de Neruda esculpida em pedra 'vigia' o Pacífico em praia de Isla Negra
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GUIA DE DESTINOS: SANTIAGO
GUIA DE DESTINOS: VALPARAÍSO
UOL BUSCA: MAIS SOBRE NERUDA
O prato principal é Isla Negra, onde fica a maior e mais interessante parte do acervo do poeta. Isla Negra, na verdade, não é uma ilha, mas o nome de uma pequena vila de pescadores no litoral chileno, às margens do oceano Pacífico, distante pouco mais de 100 quilômetros de Santiago.

A viagem vale não apenas pelo museu, mas também pelos belos cenários de praia. Amante do mar -apesar de nunca ter sido um marinheiro de verdade-, Neruda gostava de ficar perto dele, e motivos marinhos estão estalhados por toda parte em suas casas.

O poeta nacional do Chile chegou a Isla Negra em 1939, buscando refúgio para escrever seu engajado "Canto Geral". Havia apenas uma pequena casa no terreno de 5 mil metros quadrados, e Neruda foi construindo aos poucos a moradia definitiva, assessorado pelo arquiteto espanhol Germán Rodríguez Arias.

Concluída em 1965, a casa de Isla Negra paga tributo às origens do poeta. Seu formato imita os vagões de um trem, em uma referência ao fato de que seu pai, José del Carmen Reyes Morales, foi ferroviário.

Assim como La Chascona e La Sebastiana, Isla Negra está repleta de objetos de todo o mundo (3.500, espalhados pelos diversos cômodos). São obras de arte, peças de artesanato dos índios mapuches, quadros, gravuras, fotos, búzios, garrafas, mapas, instrumentos de navegação. Neruda se dizia não um colecionador, mas um "cosista" (um coisista, alguém que gosta de coisas e as acumula).

É um espaço regido pelo prazer. Parece um cenário, mas é um ambiente aconchegante. Como na poesia de Neruda, o elaborado também é simples. "Em minha casa tive brinquedos pequenos e grandes, sem os quais eu não poderia viver. Edifiquei minha casa como um brinquedo e brinco nela da manhã à noite", dizia.

Logo no começo da visita, somos surpreendidos pela sala das esculturas, que guarda carrancas de proa, duas medusas, o grande chefe comanche, a Micaela e La Marinera de la Rosa. Em outra peça, está o "cavalo mais feliz do mundo", boneco que tem três rabos postiços e ganhava presentes de todos os visitantes. No mesmo cômodo, um biombo esconde fotos de mulheres nuas do século 19 -uma senha de que o lugar era apenas para a convivência de homens. Uma última sala, que começou a ser construída em 1973 mas só ficou pronta em 1992, guarda a coleção de conchas de todos os mares do poeta.

Como todas as casas de Neruda, Isla Negra tem um bar magnificamente decorado, no qual dá vontade de sentar para tomar um pisco (aguardente de uva) e jogar conversa fora. Pena que os visitantes só possam vê-lo através das janelas.

Nos jardins, com uma privilegiada vista do Pacífico, está a tumba do poeta. Em 1992, dois anos depois da redemocratização do Chile, seus despojos e os de sua última mulher, Matilde Urrutia, foram levados de Santiago até Isla Negra na cerimônia digna que a ditadura havia furtado ao poeta em 1973. No seu poema "Disposiciones", do "Canto Geral", Neruda externava sua vontade de ser enterrado em Isla Negra.

Também tem um campanário e um barco -em que o poeta fazia seus "happy hours", mas sempre em terra, já que confessava ser apenas um "navegante de boca".

O museu também abriga exposições de arte em seu hall e abriga "El Rincón del Poeta", um café-restaurante premiado, chique e caro, especializado nas receitas do próprio Neruda. Que tal experimentar o caldo de côngrio (um peixe de carne branca e saborosa) na receita do próprio autor da famosa ode ao prato típico chileno? Para quem preferir, a rua principal da vila tem restaurantes e lanchonetes para todos os orçamentos.

Uma dica legal para depois da visita é pegar o primeiro caminho à direita de que sai do museu e descer até a bela praia cravada de rochas. Sobre uma delas um "moai" (escultura inspirada nas da cultura rapa nui da Ilha da Páscoa) no formato da cabeça do poeta observa o mar.

Neruda viveu na casa de Isla Negra até poucos dias antes de morrer, em Santiago, vitimado por um câncer de próstata, em 23 de setembro de 1973 -emblematicamente, 12 dias depois da subida de Augusto Pinochet ao poder. Depois do golpe, todas as casas do poeta foram fechadas e saqueadas pelos militares. Diz a lenda que, diante da invasão de Isla Negra, Neruda teria dito aos soldados que sua única arma era a poesia.

A Fundação Pablo Neruda obteve o controle do imóvel em 1986, restaurou os prédios em 1989 e os abriu ao público em 1990 -coincidentemente, mesmo ano do fim do regime pinochetista.

La Chascona
La Chascona (ou "a descabelada", na língua indígena quíchua) é o nome da casa santiaguina de Neruda, localizada no pé do cerro (morro) San Cristóbal. O local era ermo quando o poeta decidiu comprar o imóvel, em 1952, para ser o ninho de seu amor secreto por Matilde, que viria a ser sua última mulher (era ela "la chascona", a de cabelos desgrenhados).

A existência de um canal (hoje aterrado) que descia do morro foi um dos motivos que teriam encorajado o poeta a eleger o local. O arquiteto Arias, mais uma vez, foi escalado para transformar em realidade os sonhos de Neruda para o que na verdade é um conjunto de três casas dispostas em um terreno íngreme, com fundos para o zoológico de Santiago.

Em fevereiro de 1955, Neruda se separou da sua segunda mulher, Delia del Carril, e chegou a morar "oficialmente" em La Chascona com Matilde, que já estava lá havia um ano. Três anos depois, a casa atingiria sua configuração final. Castigada após o golpe de 73, ela também
teve de ser restaurada para virar museu e hoje é a sede da Fundação Pablo Neruda e da biblioteca do poeta, com cerca de 28 mil volumes.

Os ecos do romance entre Pablo e Matilde estão por todos os lugares da casa -como no quadro do pintor mexicano Diego Rivera em que o característico perfil de Neruda surge dos cabelos ruivos e revoltos da amante. Na casa, entre livros e objetos de decoração, está também uma réplica da condecoração do prêmio Nobel, recebido por Neruda em 1971.

Um ponto alto é a sala de jantar, construída em formato de navio e repleta de louças e objetos de todos os cantos do mundo. Neruda mandou pintar o muro ao lado dela de azul apenas para ter uma impressão de horizonte enquanto olhava pela janela durante as refeições.

O poeta mantinha uma relação íntima com o Brasil, país que visitou várias vezes, que citou no "Canto Geral" e que homenageou com uma ode ao Rio de Janeiro. Tinha muitos amigos no país, influenciou muita gente, foi entrevistado por Clarice Lispector e citado por Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e Chico Buarque, entre outros.

O Brasil é uma presença sutil na casa de Santiago, seja nos quadros de Carybé (que ilustrou edições brasileiras de livros do poeta) e José Pancetti ("um grande pintor de coração puro", dizia) nas paredes, seja nas fotos de Neruda com amigos como Jorge Amado em Salvador. Também vale lembrar que o ainda hoje vivo poeta amazonense Thiago de Mello, amigo e tradutor de Neruda, morou em La Chascona no seu exílio em Santiago durante a ditadura militar brasileira.

Próximo à casa, foi crescendo o bairro de Bellavista, que desde os anos 1960 é um dos principais centros boêmios da capital e hoje é parada certa para os turistas. Lá está até agora o restaurante Venezia, que era frequentado por Neruda. Nele, ainda dá para tomar um "schop" (como os chilenos chamam o chope) ou um pisco enquanto se olha as paredes cheias de referências ao poeta.

La Sebastiana
Cravada no colorido labirinto de moradas do Cerro Bellavista, em Valparaíso, a casa La Sebastiana foi comprada por Neruda em 1959 e inaugurada festivamente em 1961. A residência vinha ao encontro do desejo do poeta de ter um endereço na cidade portuária histórica.

Hoje, além de um museu, abriga um centro cultural e um café. No jardim, uma série de bancos "temáticos" sobre o poeta torna mais agradável o passeio. Dali, tem-se uma privilegiada vista do Pacífico e do porto, que já foi o mais importante do Pacífico Sul.

Visitas
As casas de Neruda estão abertas à visitação pública mediante pagamento de ingressos. A fundação pede para que sejam feitas reservas, mas isso não é uma regra rigorosa. As visitas, guiadas, duram não mais que meia hora. Os guias são cultos e bem-preparados e têm informações sobre a vida de Neruda na ponta da língua -muitas vezes com direito a citação de versos.

Reuters
Neruda em foto de 1971, ano em que ganhou o Nobel de Literatura
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Há lojas com suvenires e livros em todas as casas. Os produtos são legais, mas os preços são salgados. É comentário comum entre os chilenos que Neruda, militante comunista, provavelmente não teria gostado disso.

A imprensa chilena às vezes publica matérias dando conta de supostos conflitos entre a fundação e os herdeiros do poeta. Herdeiros indiretos: Neruda teve apenas uma filha, de sua primeira mulher, a holandesa Maria Antonieta Hagenaar. Mas Malva Marina Trinidad morreu prematuramente aos oito anos, sem deixar descendência do poeta que tanto amava as mulheres e a vida.

Serviço:

Isla Negra
Visitas:
Em janeiro e fevereiro, de terça a domingo, de 10h a 20h
De março a dezembro, de terça a domingo, de 10h a 18hh
Ingressos:
Tour em espanhol: 3.000 pesos chilenos (R$ 11)
Tour em inglês: 3.500 pesos chilenos (R$ 12,50)
Como chegar:
Várias operadoras locais fazem excursões, com preços de 42 mil pesos a 70 mil pesos (de R$ 150 a R$ 250); ônibus interurbanos (Santiago-Algarrobo, mas peça ao motorista para saltar em Isla Negra, adiante de Algarrobo) de companhias como a Pullman Bus saem com frequência de 20 minutos a partir de 7h do Terminal Alameda, em Santiago, por cerca de 3.500 pesos chilenos (cerca de R$ 12,5).

La Sebastiana. Valparaíso
Visitas:
Em janeiro e fevereiro, de terça a domingo, de 10h30 a 18h50
De março a dezembro, de terça a domingo, de 10h10 a 18h
Ingressos:
Geral: 2.500 pesos chilenos (R$ 9)
Como chegar:
Várias operadoras locais fazem excursões. Ônibus interurbanos saem do Terminal Alameda, em Santiago. Em Valparaíso, ônibus urbanos saindo da avenida Argentina ou da praça Equador.

La Chascona, Santiago
Visitas:
Em janeiro e fevereiro, de terça a domingo, de 10h a 19h
De março a dezembro, de terça a domingo, de 10h a 18h
Ingressos:
Tour em espanhol: 2.500 pesos chilenos (R$ 9)
Tour em inglês, francês e alemão: 3.500 pesos chilenos (R$ 11)

  • Site oficial da Fundação Pablo Neruda
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