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Edição: Memórias de viagem

Amanhecer visto da torre de 50 m do Cristalino Jungle Lodge

Mato Grosso

Avis rara

Meca de estrangeiros, um hotel de observação de pássaros no norte do Estado começa agora a ser descoberto por brasileiros

Por
José Roberto de Toledo

Amanhecer visto da torre de 50 m do Cristalino Jungle Lodge

Degrau a degrau, resfolegando, envolto na umidade amazônica, o turista vai vencendo a altura: dez, 20 metros. Binóculos e câmeras, pendentes do pescoço, parecem ter sido banhados em chumbo. 30 metros: a roupa está mais molhada do que se tivesse sido vestida do outro lado da capa de chuva. 40 metros... e quando parece que não vai agüentar, ele finalmente chega ao topo. O sol está nascendo e tudo ao redor está tomado por bruma espessa. À medida que o oxigênio volta a circular pelo cérebro e o calor faz evaporar a neblina, a cena começa a fazer sentido. No patamar mais alto da torre Chip Haven, a 50 m de altura, não há nada à sua frente além de quilômetros de selva, nos 360˚. Mas o que mais chama a atenção são os sons. Acima da copa das árvores, distinguem-se os cantos de pássaros próximos e distantes, em uma algazarra de mouros antes da batalha. É por causa deles que estamos ali. E, com o perdão do trocadilho, vale a pena.


Nas árvores centenárias, bandos de pássaros
entoam grande algazarra, como se fossem mouros antes da batalha


A região do rio Cristalino, no norte de Mato Grosso, é de fazer urbanóide virar ambientalista. Tem tudo o que se espera de uma aventura na selva: árvores gigantes, borboletas multicoloridas, macacos de várias espécies e tamanhos, rio de água transparente, insetos diabólicos, calor de sauna finlandesa, chuvas tempestuosas (sempre no plural) e aves, muitas aves: 564 espécies, para ser exato. Mas não tem nada daquilo que a indústria do turismo convencionou como um pacote de viagem amazônico: não tem pesca de piranha, não tem visita inoportuna à casa do caboclo, nem passeio pela aldeia indígena de mentirinha. É Amazônia em estado bruto, com todas as suas maravilhas e problemas.


O acesso é por Alta Floresta, via Cuiabá. Pode ser de ônibus (12 horas de viagem) ou num bimotor ATR de 45 lugares e asa alta (duas horas). Não é preciso dizer que pelo alto é mais emocionante. Além disso, a aula de ecologia começa antes mesmo de você botar o pé no chão: mais da metade dos 8,947 mil km2 do município foram desmatados. Ao se aproximar pelo sul, o estrago pode ser visto da janela do avião. São pastos a perder de vista, com manchas de mata, em geral às margens dos rios. A boa notícia é que, ao norte da cidade, ainda há milhões de hectares preservados, seja em áreas da Aeronáutica, em parques federais e estaduais, seja em reservas particulares. É esse o nosso destino.


No aeroporto, o visitante é recepcionado por uma guia e um motorista simpáticos e prestativos. Da pista vai-se de carro até um hotel na cidade, para almoçar e esticar as pernas. Ali você já começa a se sentir na selva, em plena área urbana. É que o Hotel Floresta Amazônica tem um "quintal" de 50 hectares de mata preservada. Tão preservada que, se você andar cerca de 800 m por uma trilha, poderá ver um ninho de harpia (gavião-real) ainda em uso. Pule a sobremesa e opte pela caminhada.


Araquém Alcântara
Japu fazendo ninho
Araquém Alcântara
Biguatinga no rio Cristalino
Araquém Alcântara
Filhote de harpia
Araquém Alcântara
Dupla de garças-reais

Barriga forrada, toma-se um Land Rover rumo ao norte. Por cerca de uma hora, trafegando-se em estrada de terra, vê-se a face do progresso de Alta Floresta: suas madeireiras, frigoríficos e fazendas de gado, responsáveis por um PIB (Produto Interno Bruto) de R$ 334 milhões em 2004. Chega-se então às águas que são um divisor. O rio Teles Pires tem dimensões amazônicas. No trecho da travessia, pelo menos 600 m de largura. De um lado, exploração comercial. Do outro, preservação ambiental.


Toma-se uma "voadeira", um barco de alumínio com um potente motor de popa, e a paisagem começa a mudar drasticamente. Em poucos minutos, já na foz do rio Cristalino, o piloto faz a primeira de inúmeras paradas pelo caminho. É que um bando de bugios está à margem, no encontro dos rios, como que a recepcionar os viajantes. São pelo menos 20, entre machos, fêmeas e filhotes. Com até 80 cm de altura e 9 kg, estão entre os maiores primatas das Américas. Roncam e se movimentam lentamente pelos galhos com a despreocupação de quem ignora que a conservação de sua espécie é crítica e ele corre risco de extinção.


Fotos batidas, filmagens concluídas, retoma-se o caminho, agora subindo o Cristalino. Entre dezembro e março é época de chuvas, e o rio está transbordando. Nessa região da Amazônia, com uma altitude média de 283 m, quase não se vêem igarapés e grandes áreas de mata inundada como no fundo da planície amazônica. Aqui os terrenos são mais altos e em alguns trechos há formações graníticas com mais de 100 m de altura. Mas a cheia proporciona um passeio de barco pela copa das árvores que, durante a seca, estariam dezenas de metros acima. Não demora muito a encontrarmos um segundo bando, dessa vez de macacos-aranha de cara branca. Donos de longas caudas e braços, se movem com incrível rapidez de uma árvore para outra. Não será o último encontro. Mais adiante, um terceiro bando de macacos, estes de nariz vermelho, observa o barco com curiosidade. Você chega a se perguntar se os "primos" não foram contratados para impressionar os turistas.


E assim, pouco mais de meia hora após o embarque na "voadeira", e uma centena de imagens fotografadas ou capturadas pela retina, você chega ao Cristalino Jungle Lodge. É uma clareira no meio da selva, mas com instalações muito confortáveis. Os chalés, construídos com madeira certificada, têm um banheiro que você gostaria de levar para casa e amplas janelas teladas. Sem vidro, favorecem a entrada de uma indispensável brisa. As camas são king size. Do lado de fora, uma varanda com rede e a selva a meia dúzia de passos. As refeições estão incluídas na diária. Na beira do rio há um amplo deck flutuante para os hóspedes se refrescarem do calor que oscila na casa dos 30˚C.


Se você quiser (e você deve querer), a programação do dia seguinte começa bem cedo. Um guia extremamente preparado e educado o acorda antes do amanhecer. Após caminhar menos de um quilômetro por uma trilha na selva chega-se ao destino. Ou ao menos ao sopé dele. A torre metálica incrustada no meio das árvores foi um presente de um admirador. Professor em Stanford (EUA), Tim Haven quis retribuir a satisfação rara proporcionada a um observador de aves pela Reserva Particular do Patrimônio Natural do Cristalino. Ele financiou a torre de observação e, por tabela, deu um presente inesquecível para quem se hospeda no hotel de selva.


No chão, o campo de visão é limitado por troncos e cipós. Isso diminui a chance de observar pássaros, especialmente os que vivem no dossel da floresta. A folhagem é tão densa que, mesmo estando encostado ao tronco de uma castanheira centenária, é impossível desvendar sua copa.


Daí a importância da torre. A 50 m de altura surpreendem-se tucanos e araras vermelhas em pleno vôo. Nos galhos das árvores mais próximas é possível observar um grupo de marianinhas-de-cabeça-amarela, um anambé azul, pares de araçaris-mulatos ou de nuca-vermelha. Mais adiante, um capitão-de-cinta, um chora-chuva de cara branca, um pipira de bico vermelho. Um uirapuru canta ao longe. São dezenas, centenas de aves à vista. Tantas que a região do Cristalino transformou-se em um dos principais destinos internacionais de ornitólogos e observadores de aves. Em qualquer época do ano, é provável que você encontre mais norte-americanos e europeus do que brasileiros. É pela pouca divulgação, pela fauna exuberante, pela selva preservada que o Cristalino Jungle Lodge, com seu serviço de padrão mundial, é uma pequena preciosidade discreta. Em época de aquecimento global, melhor ir enquanto é tempo.


José Roberto de Toledo é jornalista e diretor da PrimaPagina.

Hotel

Cristalino
Jungle Lodge
Tel.(0/xx/66)
3512-7100 www.cristalinolodge.
com.br
Diárias de R$ 500 (na acomodação vip), com traslados, refeições e passeios incluídos.

Transporte

Trip Linhas Aéreas
Vôos de segunda a sexta: partida de Cuiabá às 12h; volta de Alta Floresta às 14h20.

Quando ir

De agosto a setembro, na época da seca, aumenta a chance de observar grandes mamíferos, como antas e onças, na margem do rio.