UOL Viagem

Revista da Folha - Lugar Todas as reportagens

Edição: Memórias de viagem

O Porto conserva um belo casario que serpenteia em ruelas e becos

Porto

Ouro e especiarias

A cidade que deu nome a um dos vinhos mais famosos do mundo é um centro histórico vivo e inebriante

Por
Heloisa Seixas

O Porto conserva um belo casario que serpenteia em ruelas e becos

Sou dessas pessoas que nunca se lembram dos nomes das coisas. Tenho uma memória visual extraordinária e jamais esqueço um rosto (sou a testemunha ideal de um crime), mas o nome correspondente a esse rosto, aí, já é um problema. Tenho também grande capacidade de memorizar cheiros, e associá-los a acontecimentos ou lugares, informações que ficam guardadas em algum escaninho dentro de mim para sempre. Ao mesmo tempo, posso esquecer completamente o enredo de um filme a que assisti, ou de um livro que li, mesmo tendo gostado muito deles. Às vezes acho que apreendo o mundo de forma sensorial, ilógica, até mesmo um pouco caótica.


Talvez seja por isso que a cidade do Porto, em Portugal, ficou tão marcada em mim, embora eu tenha passado lá apenas três dias. Três dias é maneira de dizer. Na verdade, cheguei num dia, passei o dia seguinte fora da cidade (porque precisei fazê-lo) e fui embora no terceiro. Ou seja, o tempo que passei na cidade, se somado, não deu mais do que umas poucas horas. Pois, mesmo assim, o Porto deixou impressos em mim, de forma perene, seus cheiros e cores.


Se me pedissem para citar uma cor do Porto, eu responderia: cor de ouro. E se me perguntassem por um cheiro, eu diria: o cheiro das especiarias. Foi como eu apreendi a cidade naquela tarde em que caminhei pelas ruelas da Ribeira, com suas arcadas sombrias e sua muralha medieval. O cheiro vinha das tabernas, que se encaixam nas reentrâncias da muralha, dando de frente para o rio Douro, logo abaixo. E a cor de ouro, não preciso nem dizer. Qualquer um que passar uma tarde na Ribeira, ou do outro lado do rio, na Vila Nova de Gaia, onde ficam as caves de vinho do Porto, saberá num instante por que o rio Douro tem tal nome: à medida que a tarde cai e o sol se vai tornando oblíquo, as águas se transformam numa massa compacta de purpurina líquida, de arder os olhos.


Passeios de barco pelo rio Douro e visitas aos armazéns de vinho fazem parte do roteiro; para dar água na boca, há dezenas de restaurantes com pratos típicos inesquecíveis


Falei do cheiro das especiarias, mas de fato os aromas do Porto são muitos, múltiplos, sempre sabendo a comidas fortes, estimulantes. Algumas, só para os corajosos. Cravo, cominho, pimenta-do-reino, se misturam no ar com odores mais ousados, de bacalhau, de sangue (do molho pardo, das morcelas) ou de tripas.


O bacalhau do Porto todo mundo conhece. Ao passear pela Ribeira, o visitante pode caminhar pela travessa dos Bacalhoeiros e ver a casa onde nasceu Gomes de Sá, o cozinheiro que inventou o bacalhau do mesmo nome. Mas as tripas à moda do Porto é que são o prato típico da cidade, cujos habitantes são carinhosamente apelidados de "tripeiros". Esse apelido tem história: no século 15, quando a armada portuguesa saiu do Douro para a conquista de Ceuta, os habitantes do Porto, num gesto de patriotismo, cederam às naus toda a carne da cidade, ficando apenas com as tripas.


Já as morcelas, para quem não sabe, são uma espécie de salsicha, só que preenchidas não com carne, mas com uma pasta de sangue. Uma delícia -para quem não tem frescura. Os embutidos em geral são muito apreciados no Porto, e é com eles que se faz um dos sanduíches mais deliciosos que já comi (também típico da região), cujo nome às vezes suscita mal-entendidos.


Um amigo meu, que viajou ao Porto com a filha, conta que logo no primeiro dia, ouviu a pergunta:


- Papai, você já comeu uma francesinha?


Collection Panoramic Images/Getty Images
Barcos no rio Douro, cujas margens
abrigam fábricas de vinho do Porto

Tomou um susto. Olhou para a filha e já ia tartamudear alguma coisa quando ela, caindo na risada, explicou: a francesinha é um sanduíche. Composto de vários frios e embutidos fatiados, com o pão recoberto por um creme de queijo (come-se no prato, de garfo e faca), a francesinha tem um milhão de calorias por centímetro cúbico (como quase todos os pratos portugueses), mas é uma absoluta maravilha.


Eu própria comi uma francesinha naquela primeira (e única) tarde no Porto, sentada numa pequena taberna em Vila Nova de Gaia, tendo à minha frente o rio, com seus barcos antigos ancorados, cheios de tonéis de vinho, e à minha direita o vulto metálico -dourado, como tudo o mais- da ponte Luís 1º. A ponte é toda de ferro trabalhado, e ao olharmos para ela temos uma vaga sensação de reconhecimento -parece a Torre Eiffel. Não é para menos: o engenheiro que a construiu, no século 19, Teófilo Seyrig, foi sócio de Gustave Eiffel.


Como a torre francesa, a ponte Luís 1º é de uma beleza imponente, bem diferente da primeira ponte que existiu no lugar, a ponte das Barcas, onde centenas de pessoas morreram em 1809, tentando fugir do Marechal Soult, que atacava a cidade a mando de Napoleão. Numa das muralhas da Ribeira, há um baixo relevo em bronze do escultor Teixeira Lopes em homenagem a esses mortos, monumento singelo chamado por um nome que é puro Portugal: Alminhas da Ponte. Até hoje, as pessoas depositam junto ao monumento ramos de flores e copos de vidro vermelho com velas, cujo colorido guardo ainda na memória.


Além desses vermelhos, e dos dourados do rio, ficaram-me ainda na retina os azulejos branco-azuis, tão portugueses, das fachadas das igrejas, como a do Carmo ou a de Santo Ildefonso, o colorido das roupas a secar nas sacadas -e o que mais? Quase nada. Pena que foi tão pouco tempo.


Mas estou voltando a Portugal, agora. E já incluí no roteiro alguns dias num hotel debruçado sobre o Douro, de frente para a Vila Nova de Gaia. Quero apreender com mais vagar os cheiros e as cores do Porto. Na volta, conto como foi.


Heloisa Seixas é romancista, cronista e tradutora, autora de dez livros, entre eles "Pente de Vênus", "A Porta" e "Contos Mínimos" (ed. Record).

Hotéis

Le Meridien Park Atlantic Porto
Avenida da
Boavista, 1466
Tel. (00/xx/351/22)
607-2500
www.maisturismo.
pt/meriport
Fica a 20 minutos do aeroporto e a dez das famosas praias da Foz. A vista é muito bonita. Diárias a partir de 220 euros.
Sheraton Porto Hotel & Spa
Rua Tenente Valadim, 146
Tel. (00/xx/351/22)
040-4000
www.sheratonporto.
com/por/
Conforto e modernidade no centro da cidade. Com spa e piano bar. A partir de 150 euros.

Restaurantes

Tromba Rija
Avenida Diogo
Leite, 102,
Vila Nova de Gaia
Mais de 50 iguarias frias e quentes, como o bacalhau assado na brasa com batata a murro e migas. Há degustação de doces e queijos regionais. Bebidas, frutas e digestivos estão incluídos no preço (de 25 a 30 euros).
Mesa Farta
do Marabuto
Rua de
Mendalho, 149
Autêntica comida portuguesa, com pratos como o bacalhau à Zé do Pipo, o cabritinho assado à avozinho Marabuto, a posta mirandesa e as rabanadas com molho de sultanas.

Não deixe de ir

Vila Nova de Gaia
Nos seus diversos armazéns, conheça como é feito o vinho do Porto, com direito a degustação.
Museu do
Vinho do Porto
Situado num armazém do século 18, dos Vinhos da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, conta a história do famoso vinho português.
Palácio da Bolsa
Monumento nacional, sede da Associação Comercial do Porto, foi construído em estilo neoclássico na segunda metade do século 19.
Amarante
A 60 km da cidade do Porto, exibe suas casas do século 17 com terraços debruçados sobre a bela ponte de São Gonçalo, que conduz ao mosteiro com o nome do mesmo santo.