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Edição: Memórias de viagem

A famosa catedral de Santiago de Compostela marca o cenário da cidade

Santiago de Compostela

O milagre flutuante

Situada na Galícia, noroeste da Espanha, a cidade é conhecida como centro internacional de peregrinação

Por
Rubén Ruibal

A famosa catedral de Santiago de Compostela marca o cenário da cidade

Minha avó tinha o costume de recitar a quadrinha acima para criticar a cidade aonde tinha de chegar caminhando 40 km, mas depois era das que recomendava, a quem pretendia viajar a Compostela, visitar tanto a catedral quanto os banhos públicos da Alameda, passando pelo mercado de Abasto com seu pão de milho, Platerías com seus cavalos e sua água, a praça da Quintana com seu eco de sino e a modernista rodoviária de Castromiles, hoje desaparecida sem deixar rastro. No pólo oposto à minha avó está aquele sujeito que, perguntado sobre o que visitar em Compostela, respondeu: "Já esteve na catedral? Então vá embora, você já viu tudo". Desses dois pareceres sobre a cidade, a única coisa que se tira a limpo é o óbvio: que a catedral é a vice-presidente, logo abaixo do sacrossanto dinheiro, e que os compostelanos têm tanto a admiração quanto o desprezo pelo tesouro que habitam.


Anos atrás eu costumava dizer que se Santiago tivesse mar seria perfeita; na época eu não percebia que ela então atrairia milhões de habitantes a mais e a catedral seria reduzida a pó, vendida pedra por pedra aos japoneses ou transferida para outro local a fim de ganhar área para novas construções.


Além disso, graças ao furor imobiliário que praticamente cobriu de tijolo e concreto os 35 km que a separam da costeira Noia -a mais bonita das possíveis entradas para a cidade, com sua foz e sua igreja de São Martinho, concebida pelo mesmo mestre Mateo que criou o Portal da Glória -, Compostela quase tem mar e já atinge números estratosféricos no que se refere à população dita "flutuante", isto é, a dos que trabalham, estudam, compram, vendem, amam, odeiam, passeiam ou se entalam em engarrafamentos na área urbana, mas dormem fora, porque é mais barato.


"Santiago é boa vila, dá de comer a quem passa. Se levas cobres no bolso, há pão de milho no mercado"


Mas o viajante ainda pode achar alguns moradores resistentes, que se negam a aceitar que Compostela seja reduzida a um parque temático e insistem em continuar dando-lhe vida: velhos e junkies que herdaram casa ou aluguel barato; estudantes e garçons que moram em repúblicas num pacífico centro histórico; comerciantes que teimam em subsistir negociando com os compostelanos, e não apenas com os turistas; padres com moradia paga pela Igreja; funcionários solteiros, bancários e empregados do comércio, todos eles vindos dos quatro cantos da Galícia para habitar uma cidade impossível, o sonho de um louco que deixa Disneyworld e congêneres no chinelo.


As coisas são mais ou menos assim desde o século 11, quando a diocese era regida por Diego Xelmírez, o autêntico criador e, principalmente, financiador dessa loucura. Para mim, Xelmírez tem muito mais mérito que o próprio Walt Disney e toda a saga de criadores de parques temáticos. Afinal, esse homem inventou, sozinho, a arquidiocese e o jubileu, conseguindo que, de lá para cá, a cidade não parasse de se encher, não apenas de peregrinos, mas também de gente disposta a fazer qualquer coisa para morar nesse lugar. Como se não bastasse, o bom Dom Diego conseguiu construir tudo isso sobre um mito que se sustenta, acima de tudo, na flutuabilidade da pedra.


É curioso pensar, lá no alto do Pedroso -se os casais que se amam ou os ciclistas que queimam calorias por outros meios não interferirem na calma necessária à filosofia viajante-, que a história dessa grande nave de pedra começou justamente assim: pois é fato comprovado, e decerto até um dogma, que o cadáver do apóstolo Santiago apareceu boiando sobre uma jangada de pedra alguns quilômetros mais ao sul, perto da antiga Iria Flavia, hoje Concelho de Padrón, local da primeira Sé Compostelana, depois de atravessar todo o Mediterrâneo e as costas portuguesas.


André Klotz
Sapatos de um peregrino

Não se sabe ao certo quais foram os meses do ano que testemunharam tamanha proeza, mas calcula-se que tenham sido os do inverno, quando, com os temporais e o mar bravio, a pedra apresenta seu melhor nível de flutuabilidade. Além disso, o guia daquela milagrosa jangada teve o cuidado de não permitir que a singradura tocasse a costa mais setentrional, chamada "da Morte", onde os fortes ventos e correntes marinhas que todos os anos afundam vários navios poderiam ter malogrado a peripécia.


Alguns compostelanos suspeitam, muito secretamente, que o aparecimento do apóstolo por essas bandas foi uma autêntica loteria, pois o destino da tal jangada devia ser algum país mais avançado da velha Europa, ou quem sabe até da América do Norte ainda a ser descoberta pela lerda Europa, do qual Deus, estranhamente, não se lembrou na partilha de túmulos apostólicos. De tudo isso se deduz que nós, galegos, apesar de não darmos o devido valor a nossas tradições e nossa língua, irmã do português e do castelhano, pelo menos reconhecemos que Compostela nasceu com a bunda virada para a lua.
É fácil passear por Compostela 20 ou 30 anos depois de conhecê-la e ainda achar em cada rua uma surpresa, uma novidade, uma mostra de beleza em que não se tinha prestado a merecida atenção. Seja a memória a densa floresta que deixamos para trás ou o facão com que voltamos a desbravá-la, a cidade sempre surgirá como diferente daquela que recordamos.


É impossível esquecer suas ruas, a fachada de Platerías, as vistas da Alameda ou do Pedroso, a Quintana silenciosa e escura com a Berenguela cantando as doze badaladas, a boa comida.


Mas mesmo que o viajante se veja obrigado a comer mal ou dormir em qualquer chão, Compostela fará brotar nessa floresta da memória tal quantidade de belas árvores, flores e musgos, que quem a visitar sempre sentirá a tentação de voltar, como peregrino, turista, crítico, congressista, curioso ou perdido: para redescobrir a cidade que nunca devia ter deixado, ou que talvez devesse ter visitado muito antes, a cidade da chuva e da pedra, a capital do magnetismo e do milagre.


Rubén Ruibal é ator e escritor. Entre suas peças destaca-se "Limpeza de Sangue", com a qual obteve, em 2005, o Prêmio Álvaro Cunqueiro, um dos mais importantes da Espanha.

Tradução de Sérgio Molina


Hotéis

Parador de Santiago de Compostela
Pza. do Obradoiro, 1
Tel. (00/xx/34/981)
582-200
www.parador.es Antigo hospital real, recebe peregrinos desde o final do século 15. É um dos mais luxuosos hotéis do mundo. Fica perto da catedral. Diárias a partir de US$ 280.
Hotel Peregrino
Puente La Reina, na rota de Jacobea
Tel. (00/xx/34/948)
340-075
www.hotelelperegrino.
com
Imitação de uma ermita e de um palácio romano, esse lugar charmoso convida à reflexão. A partir de US$ 170.

Restaurantes

Toñi Vicente
Av. Rosalia de Castro, 24
Tel. (00/xx/34/981)
594-100
www.tonivicente.com Prove as deliciosas marinadas. Ou então se renda ao "menu degustación". Gasto médio de US$ 50 por pessoa.
Restaurante Carrileña
Rua Franco, 48
Tel. (00/xx/34/981)
582-789
www.restaurante
carrilena.com
As especialidades são a mariscada de la casa e a merluza a la carrileña. Ótimos vinhos da Espanha.