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Edição: Memórias de viagem

Lanternas vermelhas <br>na entrada de uma loja

Cenário

Doce Cingapura

Lembranças adolescentes da cidade que se revela nas ruas e nos aromas que passeiam pelo ar

Por
Peter Burke

Lanternas vermelhas
na entrada de uma loja

Em 1956 e 1957 passei mais de 18 meses em Cingapura. Não fui para lá por opção própria, mas acabei desenvolvendo muito afeto pelo lugar. Naquela época o serviço militar de dois anos era obrigatório para os rapazes britânicos de 18 anos. Fui alistado no exército, fiz meu treinamento no Reino Unido -aprendi a lutar e a fazer contabilidade-, fui indagado onde gostaria de fazer meu serviço militar (pedi para ir à Alemanha, onde os britânicos mantinham um exército de ocupação) e fui enviado a Cingapura. A viagem foi de navio, passando pelo canal de Suez (alguns meses antes da crise do Suez, em 1956). Minha primeira visão de Cingapura, desde o mar, coincidiu com o Ano Novo chinês. Havia tantos fogos de artifício pipocando que a impressão que se tinha era que havia estourado uma guerra.


A capital gastronômica da Ásia mistura edifícios modernos a bairros turísticos como Chinatown e Little Índia


Meu regimento, o Regimento de Sinais do Distrito de Cingapura, ficava estacionado fora da cidade, mas era fácil chegar ao centro de ônibus, e eu passava a maior parte de meus fins de semana caminhando pelas ruas, adquirindo um gosto que nunca mais perdi por explorar cidades estrangeiras a pé (uma das queixas que tenho de São Paulo, por mais que eu ame a cidade sob outros aspectos, é a dificuldade de andar nas ruas em algumas áreas).


Cingapura em 1956-57 não podia ser descrita como bela. Os prédios eram um tanto quanto decadentes, e muitos precisavam de uma nova mão de pintura. As ruas não eram muito limpas. Andar pelas ruas à noite podia ser perigoso, especialmente para quem tivesse bebido, devido à possibilidade de cair nos canais de escoamento abertos e fundos, que pareciam leitos de rios e visavam drenar as enchentes que eram muito comuns na temporada das monções. Apesar desses riscos, a cidade possuía um certo charme colonial decrépito, um pouco como partes de Havana nos dias de hoje.


O que era especialmente instigante -especialmente para mim, novato em Cingapura que até então tinha viajado pouco para fora do Reino Unido e concluíra o colégio apenas seis meses antes- era a vida das ruas: as coisas que havia para ver (cartazes em ideogramas chineses e nos alfabetos arábico e indiano), os sons (especialmente as pessoas gritando em diversas línguas), e, não menos, os cheiros (como os de especiarias e frutas em decomposição). Diferentemente do Reino Unido -mas, como eu iria descobrir mais tarde, como o mundo Mediterrâneo e o México-, as ruas não eram simplesmente locais de passagem entre um lugar e outro, mas o ambiente em que ocorriam trocas comerciais, conversas e, a meio caminho entre as duas coisas, barganhas sobre preços. Oficinas e lojas ficavam abertas, e era possível ver artesãos produzindo elaborados féretros chineses, por exemplo. Bebidas refrescantes como "água castanha" eram vendidas na rua por um homem que empurrava um carrinho de mão e um enorme bloco de gelo, do qual cortava fatias que pareciam a plaina de um carpinteiro.


Ronald Sumners/Shutterstock
Telhado do Esplanade Theatre, com o formato inspirado na "durian fruit"

Os restaurantes transbordavam para a rua, e garçons ficavam postados do lado de fora para atrair ou mesmo puxar fregueses para dentro (eu costumava andar no meio da rua para evitar ser capturado). Em um de meus restaurantes prediletos, na rua Bugis, os clientes ficavam sentados no primeiro andar, enquanto a "cozinha" era um espaço na calçada. Eu me lembro de olhar para baixo, desde uma janela no primeiro andar, e ver um cozinheiro gordo na calçada, segurando uma frigideira e suando profusamente. Eu torcia para que não fosse a minha comida que ele estivesse fritando.


Muitas das ruas centrais eram galerias que ofereciam proteção do sol e da chuva. Durante o dia, cartomantes ficavam sentados ali, cada um munido de um baralho e de uma pequena gaiola contendo um pássaro que lembrava um cardeal. Quando recebia um freguês, o cartomante abria a gaiola, o pássaro saía e pegava uma carta em seu bico, e então o cartomante explicava o significado da carta ao cliente.


À noite, por volta das 22h, as mesmas ruas eram convertidas em quartos de dormir. Cingapura era uma cidade superlotada -dizia-se que três famílias normalmente ocupavam um mesmo quarto, revezando-se para dormir em três turnos de oito horas- e fazia calor à noite, de modo que dormir ao relento era até agradável. Quando eu retornava a meu regimento, à noite, era obrigado a abrir caminho entre grandes "sikhs" munidos de "charpoys" (camas de madeira) que se estavam acomodando na calçada. Em momentos como esse eu era o único europeu na rua. Às vezes eu me tornava objeto de curiosidade, mas nunca, pelo que me recordo, fui alvo de hostilidade.


O centro de Cingapura reflete sua diversidade cultural; influências chinesas, malaias, indianas e britânicas aparecem na arte e na arquitetura


Depois de deixar o exército, não revi Cingapura por muito tempo. Li sobre o novo regime de disciplina e limpeza, e isso me fez relutar em retornar a um lugar que eu aprendera a amar da maneira como era em 1956-57. Cinquenta anos mais tarde, em 2006, quando fomos convidados a dar uma palestra em Taiwan, minha mulher me convenceu a fazer uma escala em Cingapura para ver o que mudara no último meio século. Quase tudo mudara, exceto por alguns remanescentes da época colonial, como a catedral anglicana ou o Raffles Hotel. Até mesmo o formato do porto estava diferente, devido aos aterros.


Quanto às ruas, seus nomes eram familiares, mas os prédios eram irreconhecíveis. Ou os sobrados tinham sido demolidos para dar lugar a altos edifícios, ou tinham sido cuidadosamente restaurados a sua forma original (de 1900 ou 1930), mas tinham sido convertidos em lojas de suvenires para turistas. Tive em Cingapura a mesma sensação que Carlos Drummond de Andrade, quando velho, contou ter tido em relação ao Rio: que uma cidade estranha tinha sido erguida sobre a cidade que ele conhecera e amara no passado. Hoje, algumas partes decadentes de Taipé evocam a Cingapura que conheci anos atrás de maneira mais vívida do que qualquer coisa que pude encontrar no dia que passei na própria ilha.


Peter Burke é professor de história da cultura na Universidade de Cambridge, autor de "A Fabricação do Rei" e "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar Editor), entre mais de 30 obras.

Tradução de Clara Allain

Hotéis

Raffles Hotel Singapore
1 Beach Road
Tel. (00/xx/65)
6337-1886
www.raffles.com Um dos mais luxuosos hotéis do mundo, declarado patrimônio nacional, oferece um belíssimo spa. Diárias a partir de US$ 525.
Four Seasons Hotel Singapore
190 Orchard Boulevard
Tel. (00/xx/65)
6734-1110
www.fourseasons.
com/singapore
Próximo ao centro financeiro. É decorado com 1.500 peças de arte asiática. Diárias a partir de US$ 350.
Swissôtel
The Stamford
2 Stamford Road
Tel. (00/xx/65)
6338-8585
www.swissotel.com Hotel mais alto do sudeste asiático, de 72 andares. A partir de US$ 180.

Restaurantes

Equinox Complex
2 Stamford Road
Tel. (00/xx/65)
6837-3322
www.equinoxcomplex.
com
Ideal para um jantar a dois, com vista arrebatadora da cidade.
Golden Mile
Food Centre
505 Beach Road
Para se sentir um cingapurense. Deliciosa mistura de cheiros e sabores.

Não deixe de ir

Little India
www.littleindia.com.sg Um agradável passeio pelos aromas de especiarias e jasmim indianos. É possível agendar um tour a pé pelo site www.
singaporewalks.com
Chijmes
30 Victoria Street
Tel. (00/xx/65)
6336-1818
Antigo mosteiro de arquitetura gótica, foi transformado em centro cultural. Com apresentações de música, teatro e dança. O lugar possui restaurantes e diversas lojas.
Chinese Garden
1 Chinese Garden
Tel. (00/xx/65)
6261-3632
Inspirado na arquitetura e paisagem da China imperial, você verá um lindo jardim de bonsai após cruzar uma ponte em arco como a do Palácio de Pequim.