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Edição: Memórias de viagem

Porta ornamentada na <br>cidade de Sidi Bou Said

Tunísia

Perfume de âmbar

Nas franjas do deserto do Saara, país africano seduz com seus mistérios e ambigüidades

Por
Lygia Fagundes Telles

Porta ornamentada na
cidade de Sidi Bou Said

Era noite quando chegamos ao aeroporto. O céu estrelado, ah, aquele céu palpitando de estrelas e lá longe a silhueta branca da cidade. Não arranha-céus com a agressividade de cimento e aço mas a mansa ondulação das abóbadas, dos muros rasos, dos pátios. Rompendo a horizontalidade das linhas, de vez em quando a graça fina das mesquitas.


Não gosto de avião mas por este ou aquele motivo, estou sempre metida em algum e a solução é carregar na dose do vinho tinto que a gentil comissária oferece, não ficar com a cara daqueles condenados à morte encomendando sua última ceia. Daí aquele meu obumbramento quando desci a estreita escada, mas afinal estava em Túnis ou em Cartago? Sondei o nosso acompanhante, um árabe de bata cinzenta, bigodões negros e fez vermelho no alto da cabeça. Num francês forte, carregado de "rr", ele respondeu que Cartago ficava próxima de Túnis, meia hora ou talvez menos. Em silêncio abarquei com o olhar a cidade completamente branca e na qual eu mergulhava como se mergulha num sonho.


O jogo de contrastes e cores é uma das marcas da Tunísia; outra é a coleção de ruínas que contam as histórias dos povos que por ali passaram


Tunísia, África do Norte, lembrei. A língua era o árabe e a religião, o islamismo. População? Muçulmanos arabizados com uma minoria européia, mais franceses do que italianos. Em 1957 a monarquia foi abolida e houve a proclamação da república. Lembrar ainda que o amado Santo Agostinho (ah, minha juventude e as Confissões) era um romano da África que provavelmente tinha nas veias o sangue berbere embora fosse o latim a sua língua materna. E o que mais eu sabia? Tive vontade de rir quando nos dirigimos para o hotel porque sabia ainda que viver com o Paulo Emilio era o mesmo que andar com um passaporte na mão, ele era jurado do Festival Internacional de Cinema do Irã.


As delegações do festival estavam alojadas no Hilton Hotel, que dominava o ponto mais alto de um outeiro. Hotel imenso no estilo ocidental mas com decoração oriental. Em meio dos turistas milionários, os artistas e cineastas da França, Egito, Senegal, Itália, Argélia... -delírio total de línguas e trajes. Quando entrei no elevador senti um delicioso perfume de âmbar e que me fez cerrar os olhos de felicidade, ah, esse perfume de alguém que subiu ou desceu há pouco. A mesma pessoa entrou aqui de novo, pensei em êxtase quando entrei no elevador pela segunda vez. Custou um pouco (sou distraída) para perceber que o perfume de âmbar fazia parte do elevador. Então, sempre que entrava nele eu ficava feliz.


Lorne Resnick/Getty Images
Mulher faz compras em
mercado na cidade de Spusse

Tive uma idéia global da cidade na manhã seguinte da sacada do nosso apartamento: o sol no auge, era outono, mas outono sob o sol da África quer dizer verão. Lá embaixo, em meio do verde violento da vegetação, a caprichosa mancha azul-turquesa da piscina. Americanos e alemães lustrosos e vermelhos estendidos nas suas cadeiras, óculos escuros, servidos por jovens garçons de calças bufantes e colete de seda. Nas mesinhas, as iguarias por entre as garrafas de vinho e uísque, ah, as pirâmides de uvas douradas brilhando por entre os cubos de gelo. Nossa, como os ricos se divertem! foi o pensamento subversivo que me ocorreu.


A divisão é convencional mas ainda válida: há as cidades masculinas e as cidades femininas. A cidade de São Paulo, por exemplo, é macho sim senhor. O Rio é do sexo feminino e nessa trilha Túnis também é feminina na disposição do casario arredondado, sem arestas, com aquelas ambigüidades e mistérios do segundo sexo. Do segundo sexo e do Terceiro Mundo: miséria e riqueza, desamparo e poderio. Contudo, é uma cidade limpa e bela principalmente na parte antiga e verdadeira porque não contaminada pela arquitetura ocidental, era bom ficar vendo da sacada do hotel a cidade lá adiante desdobrando-se numa brancura imaculada de cal. Nas lonjuras, por entre o casario rareando nos descampados, a silhueta tranqüila dos camelos cruzando as estradas.


Nos famosos "suks",
os mercados que se desdobram por toda a Tunísia, é possível
encontrar tapeçarias, jóias, pratos, temperos e especiarias


Andei e desandei pelos mercados, os famosos "suks" transbordantes de tapeçarias, pratos de cobre, jóias -centenas de pequenas lojas perdendo-se por labirintos nos quais também me perdi. E de repente aquela praça alvíssima onde os vendedores ambulantes abrem suas tendas de tâmaras em cachos e uvas e romãs explodindo de vermelhidão e doçura.


Embora a dura lei dos árabes já tivesse libertado as tunisianas do uso obrigatório do véu, a burca que cobre todo o rosto deixando de fora apenas os olhos negros e pintados, apesar de libertas, as tunisianas, com raras exceções, continuavam veladas. Pressão da religião? Da família? Interroguei um jovem garçom que nos serviu um peixe rosado como as areias da praia de Hammamet. Ele sorriu constrangido e demorou para responder: Mulher tem de ser escondida. Guardada.


As guardadas mulheres da Tunísia. E agora me lembro, no cinema, uma tunisiana que se sentou ao meu lado durante a projeção de um filme egípcio, só no momento de emoção maior, descobriu-se. Abanou-se nervosamente com o programa, senti-lhe o perfume de jasmim. Lancei-lhe um olhar. Ela então baixou a cabeça e novamente se cobriu.


Lygia Fagundes Telles é membro da Academia Brasileira de Letras e autora de mais de 20 livros. A escritora recebeu, entre vários prêmios, o Camões, o mais importante em literatura da língua portuguesa.

Texto inédito extraído do livro "Conspiração de Nuvens", organizado por Suênio Campos de Lucena, a ser lançado pela editora Rocco.


Hotéis

Renaissance
Tunis Hotel
Les Cotes de Carthage, 2078
Tel. (00/xx/216)
7191-0900
www.marriott.com/ Construído com colunas romanas, fica próximo dos sítios arqueológicos de Cartago e do vilarejo de Sidi Bou Said. Diárias a partir de US$ 210.
Abou Nawas Tunis
Av. Mohamed
V, 1080
Tel. (00/xx/216)
7135-0355
www.abounawas.com.
tn
Moderno e imponente, está a poucos metros dos mercados e do Palácio do Congresso. Possui três bares e quatro restaurantes, um deles panorâmico. Tome café da manhã no jardim do hotel, cercado de palmeiras e cerâmicas mouras. A partir de US$ 200.
Les Berges du
Lac Concorde
Rue du Lac Turkana
Tel. (00/xx/216)
7196-1951
www.tunis.concorde-hotels.com Na beira do lago Túnis, esse hotel de luxo proporciona uma bela visão da cidade. À noite, prove uma das especialidades do chef Jérôme Coindre, no Le Paris Gourmet, enquanto aprecia o lago. Diárias a partir de US$ 175.

Restaurantes

Carcassone
Avenue de Carthage, 8 Tel. (00/xx/216)
7124-0702
Vale experimentar a picante salada tunisiana acompanhada de cuscuz.
Dar El Jeld
Tel. (00/xx/216)
7156-0916
www.dareljeld.
tourism.tn
No coração de Medina, tem ambientação típica e variedade de pratos e vinhos.

Não deixe de ir

Kairouan
www.kairouan.org A cidade sagrada dos muçulmanos na Tunísia, considerada patrimônio mundial pela Unesco, tem atrações como a "La Grande Mosquée", construída a partir de 670 d.C.
Douz
A 450 km de Tunis, é o maior oásis da Tunísia, próximo ao lago Chott El Djerid e do deserto do Saara. O passeio de dromedário é essencial para encarnar um personagem de história árabe.