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Revista da Folha - Lugar Todas as reportagens

Edição: Memórias de viagem

Golfinhos-rotadores no fundo do mar de Fernando de Noronha

Natureza

Aventuras pelo mundo

Quatro passaportes carimbados, mais de vinte países visitados e o desejo incessante de viver "on the road"

Por
Maristela Colucci

Golfinhos-rotadores no fundo do mar de Fernando de Noronha

O diálogo se repete constantemente. Estou em algum ponto remoto do planeta e alguém comenta: "Puxa, que bacana você acompanhar o seu marido nestas expedições". Eu prontamente respondo que é ele quem me acompanha, mas confesso que alguns interlocutores me olham desconfiados.


Comecei a me envolver em longas viagens ainda adolescente, aos 13 anos. Resolvi muito cedo que seria fotógrafa e desde então procuro ir a lugares nos quais a natureza é intacta e o contato com os animais mais próximo. Um dos maiores prazeres da minha vida é viajar, sentir a liberdade de estar na estrada, sem datas nem lugares pré-marcados.


Já vivi coisas incríveis nesses anos. Um mergulho com tubarões nas Bahamas, outro com golfinhos-rotadores em Fernando de Noronha; um trekking na Geórgia do Sul; uma velejada na Antártida; o inesquecível sobrevôo nas ilhas Maldivas amarrada num helicóptero sem portas para fotografar...


Há inúmeras vantagens em viajar a lugares como esses. Natureza bruta, gente encantadora, desafios, novas culturas. Há dificuldades também, como a falta de privacidade e a precariedade de condições para situações básicas de higiene.


Pergunte a dez mulheres se elas conseguiriam ficar um mês sem tomar banho e elas responderão em uníssono: "Nem pensar!".


A primeira expedição mais longa que fiz a bordo de um veleiro foi para a Ilha da Trindade, a última fronteira do Brasil, na altura do litoral do Espírito Santo. E já de cara tive que encarar os tais 30 dias sem banho. Éramos dez pessoas a bordo e a água racionada.


Quando chegamos à ilha, após 11 dias de travessia, me animei pensando que no final das longas e puxadas caminhadas diárias eu poderia tomar banho na base militar que existe lá. Só não contava com um inconveniente: teria que voltar ao veleiro (onde passávamos todas as noites) nadando, por causa das péssimas condições de embarque e desembarque na ilha. Conclusão: durante uma semana, todo fim de tarde eu tomava um bom banho, lavava os cabelos, tinha aquela sensação de frescor por menos de uma hora e em seguida mergulhava no mar para "voltar para casa".


Maristela Colicci
Pingüins reais na Geórgia do Sul
Maristela Colucci
Encontro com uma moréia, nas Bahamas
Maristela Colucci
Urso polar em Labrador, no Canadá

Piscinas naturais

Mas a verdade é que eu passava o dia todo explorando a ilha sem pensar em nada disso. Esses detalhes caem facilmente para o segundo plano quando você está fora da sua rotina e tem a oportunidade de conhecer paisagens inimagináveis como a floresta das samambaias gigantes de Trindade. Ou praias intocadas banhadas por águas de um azul oceânico no meio do Atlântico.


Em outro ponto perdido, o Atol das Rocas, passei 14 dias hospedada no alojamento da Reserva Biológica, depois de ter sido deixada lá, com mais três pessoas, pelo veleiro que nos levou de Natal numa travessia de um dia e meio. O veleiro desembarca as pessoas no Atol com todas as provisões (água doce é apenas para beber e cozinhar) e só retorna para buscá-las na data combinada. A sensação de isolamento é a maior que já senti em toda minha vida. A de cooperação, sempre muito forte em expedições, também.


Ali todos se ajudam mutuamente, a cada momento e em todos os sentidos. Seja para auxiliar a carregar a louça do almoço até a beira da praia, onde ela será lavada com areia e água do mar, seja para manter um mínimo de privacidade nas tarefas pessoais de higiene. Para ir ao banheiro, por exemplo, é preciso avisar a todos, já que você tem que se dirigir a um determinado local numa virada da praia e ficar de cócoras sobre a areia, sem qualquer "barreira visual". Não, não há uma sombrinha para amenizar a situação? Sombrinha que, aliás, faz falta no Atol todo, a todo instante. Andávamos muito sob o sol para ir do alojamento às piscinas naturais formadas na maré baixa. Lá, tínhamos o privilégio de mergulhar com cardumes de pequenos peixes e até com seres maiores como tartarugas, moréias e lambarus, todos aprisionados nas piscinas até que a próxima maré alta viesse.


Antes de escurecer, tomávamos banho no mar, usando depois a técnica de não se secar esfregando a toalha na pele, e sim dando leves toques com ela, para retirar o máximo de sal do corpo. Finalizávamos os cuidados com lenci-nhos umedecidos e muito hidratante.


Albatroz curioso

Uma expedição que fiz de Nova York até o Círculo Polar Ártico também me privou, durante quatro meses, de muitas coisas a que as pessoas costumam dar valor na rotina urbana. Mas como lembrar dessas pequenas coisas quando se é presenteado com dez minutos do espetáculo da aurora boreal, com seus lampejos verdes e violetas tingindo o céu sobre a sua cabeça? Ou com a visão de um urso polar selvagem? Para não falar no contato com o simpático povo esquimó.


Alguns anos antes, eu havia estado também na Antártida, sempre de veleiro, onde o espaço é restrito, tudo é compartilhado e a convivência forçadamente íntima com pessoas que muitas vezes mal se conhecem. Se o convívio humano nem sempre é fácil, pode-se dizer exatamente o oposto em relação aos animais antárticos. Pingüins, focas, elefantes-marinhos e albatrozes são extremamente dóceis e permitem uma aproximação rara.


Numa pingüineira, bastava chegar com jeitinho para, em poucos segundos, me ver rodeada por 600 mil pingüins: algo simplesmente indescritível. Já um albatroz mais curioso, sem a menor cerimônia, tentou abrir com o bico minha mochila. São experiências como essas que fazem valer a pena a tensão das travessias sobre ondas gigantescas, o desconforto do enjôo marítimo?


Numa dessas situações, um companheiro me disse que achava que as pessoas, para estarem ali numa boa, tinham que ser "rústicas". Eu adquiri facilmente essa rusticidade -"adormecida" na cidade e acionada a cada nova viagem- pelo prazer enorme que tenho em conhecer e fotografar esses lugares.


Desde as primeiras jornadas adolescentes pelas cachoeiras de Minas Gerais, mantenho o gostinho de descobrir, conhecer, fotografar e compartilhar. E sonhar, muito. Quero fazer a Transiberiana de trem; sair de veleiro da Groenlândia, passando pelo Canadá, o Alasca e desembarcando nos EUA; conhecer as ilhas Fiji, no Pacífico; viajar pela Islândia; desvendar os mistérios da Turquia...


Maristela Colucci é fotógrafa, autora de "Brasil Submarino" (ed. Metalivros), "Rota Boreal (ed. Terra Virgem) e "Antártica, Um Mundo Feito de Gelo" (ed. Companhia das Letrinhas). Ela irá partir, em setembro, para uma nova expedição: durante três meses acompanhará o velejador Beto Pandiani na primeira perna da circunavegação do globo leste/oeste de catamarã sem cabine: do litoral do Chile ao Taiti, passando pela Ilha de Páscoa.

Editorial

Diários de bordo

A revista Lugar é um roteiro de histórias, experiências e lembranças de viagem. De gente de área diversa, como escritores, cineastas, poetas, fotógrafos, historiadores. Nessa quarta edição, temos o prazer de publicar um texto inédito do próximo livro de Lygia Fagundes Telles. A grande dama da literatura brasileira nos leva a um passeio delicioso pela Tunísia, cenário de uma viagem que fez com o marido, o crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes, nos anos 70. Há também as impressões do historiador inglês Peter Burke, que relembra um período vivido em Cingapura, e um artigo da escritora americana Kathleen McGowan sobre Languedoc, refúgio francês à beira dos Pirineus. A Lugar é também um espaço para belas imagens, caso do ensaio de Araquém Alcântara sobre a Amazônia e do trabalho da fotógrafa Maristela Colucci, que abre seu álbum de aventuras pelo mundo.

Chantal Brissac