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R$ 15 no bolso e "bicos": jovem percorre América Latina em viagens de bike

Bárbara Therrie

Colaboração para o UOL

16/01/2019 04h00

Sem emprego e descontente em morar na cidade grande, o designer Luis Antonio Cunha, 26, deixou a comodidade da casa dos pais em busca de uma vida autossuficiente. Com poucos equipamentos no bagageiro da bike, ele percorreu oito estados brasileiros e oito países em quase três anos de viagem.

De pausa enquanto se prepara para uma nova aventura pelas Américas, ele conta ao UOL Viagem as experiências mais marcantes e inusitadas que viveu, que vão desde construir um hotel flutuante até dormir em uma casa mal-assombrada com um "morto-vivo".

"A ideia de viajar de bike surgiu da minha vontade de ser independente. No meio de 2015 eu me formei em Desenho Industrial, fui demitido de uma multinacional e não achava emprego. Além disso, eu estava descontente de morar em São Paulo devido ao alto custo de vida, a dificuldade de locomoção, o trânsito, o consumismo e a poluição.

Pesquisei na internet histórias de pessoas que eram adeptas do cicloturismo. Me identifiquei e vi que era uma prática viável. Eu não era um atleta de ciclismo, usava a bike como um meio de transporte econômico e ágil para me deslocar aos lugares.

Decidi percorrer o Brasil e outros países da América Latina e, no dia no dia 13 de janeiro de 2016, saí de casa com R$ 15 no bolso e uma receita de arroz da minha mãe.

O jovem durante viagem pela Bolívia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O jovem durante viagem pela Bolívia
Imagem: Arquivo pessoal

Fui de São Paulo para o Paraná, passei por Santa Catarina, Rio Grande do Sul e cheguei ao Uruguai. De lá, segui para a Argentina, Chile, Bolívia e voltei para o Brasil, conheci o Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia e Acre. Depois explorei o Peru, cruzei o Equador e a Colômbia. Avancei um pouco e fui, de barco com a bike, para o Panamá, na América Central.

Viajei com uma bicicleta de alumínio aro 26, carregando nos bagageiros: colchonete, barraca, rede, três camisetas, três cuecas, três meias e duas calças que viram shorts.

Ao longo do trajeto troco roupa com viajantes, faço e recebo doações.

Também levo utensílios de cozinha, estufa, fogão e equipamentos tecnológicos, celular, câmera fotográfica e notebook. Com o cicloturismo eu tenho uma vida autossuficiente: como, durmo e viajo com conforto.

Luis Cunha, 26, encarou 8 países e 8 estados brasileiros em cima de sua bike - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Luis Cunha, 26, encarou 8 países e 8 estados brasileiros em cima de sua bike
Imagem: Arquivo pessoal

Todo tipo de 'bico'

Eu tinha R$ 13 mil na poupança para gastar com a viagem, mas percebi que essa não seria minha principal fonte de renda. Quando cheguei em Cananéia (SP), não achei um caixa eletrônico para sacar a quantia da hospedagem. Sugeri para o dono do camping fazer uma ilustração por R$ 100, o equivalente a dez diárias. Ele concordou. A partir daí entendi que gastaria aquilo que produzisse. Trabalharia em troca de dinheiro, hospedagem e comida.

Saí de casa sem saber cozinhar, lavar, limpar, mas aprendi a me virar e fiz todo tipo de 'bico'.

Já fui fotógrafo, pintor, barman, ajudante de cozinha, camareiro, limpador de banheiro, jardineiro e instrutor de surfe.

A experiência profissional mais enriquecedora que tive foi no Panamá, na construção de um hotel flutuante. Trabalhava dez horas por dia, seis vezes por semana. Auxiliava na carpintaria, pintura e acabamento. Ganhava uma acomodação e R$ 3.500 de salário por mês.

Já passei a noite em uma 'casa mal-assombrada'

Eu raramente me hospedava em hotéis, mas procurava ficar em lugares seguros. Já acampei em cemitério -- é legal pelo silêncio e porque dá para se proteger da chuva nos coretos. Já dormi em quintal, casas abandonadas, aldeias indígenas, povoados, posto de gasolina, albergues, praças, praias, beira de rios, cachoeiras, no Corpo de Bombeiros.

Na Bolívia, passei por regiões onde não tinha água encanada nem energia elétrica. Na Argentina fiquei cinco dias sem tomar banho pela falta de água quente após pegar temperatura de -4°C.

O lugar mais inusitado que passei a noite foi em uma 'casa mal-assombrada com um morto-vivo' no Equador. Estava pedalando das Cordilheiras dos Andes para o litoral quando começou a chover e anoitecer. Achei uma casinha no meio das montanhas.

 Perguntei ao proprietário, um senhor de 97 anos, se poderia acampar no terreno dele. Ele me respondeu: 'Pode entrar, meu amigo, eu não tenho medo de você. Pode roubar o que quiser que eu já estou morto'. Eu fiquei assustado e falei que só precisava comer e dormir. Ele me deixou entrar. A casa era de madeira, muito velha, tinha vários alimentos podres e um monte de espiga de milho seca no chão.

Eu preparei minha comida e ofereci a ele, mas ele voltou a dizer que estava morto e que não precisava se alimentar. Conversamos sobre a família dele e depois fomos dormir. À noite ouvi vários barulhos no teto, parecia rato. No dia seguinte agradeci a estadia e fui embora.

Na bicicleta de alumínio aro 26 ele levava colchonete, barraca, rede e pouquíssimas peças de roupa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Na bicicleta de alumínio aro 26 ele levava colchonete, barraca, rede e pouquíssimas peças de roupa
Imagem: Arquivo pessoal

Atravessei o Deserto do Atacama em um mês

Pedalava, em média, de 45 km a 120 km por dia. Já viajei por rodovias, estradas de barro, de terra, pela areia, água, montanhas e selvas. Meu maior desafio físico e mental foi atravessar o Deserto do Atacama, no Chile, durante um mês. Fui no inverno, com temporada de ventos de 40 km/h a 50 km/h.

Minhas maiores dificuldades foram a estrada de areia, a altitude que passava dos 4.000m, a falta de umidade. No mesmo dia, eu pegava temperaturas extremas, de 15°C a -15°C. Também passei muito mal, meu nariz sangrava, tinha dor de cabeça, enjoos, vômitos, falta de apetite. Durante o dia só comia uva-passa e mascava folha de coca. Foram cerca de 1.000 km de extensão. Fiquei muito feliz de ter conseguido. Foi uma experiência impactante pelo clima, belas paisagens e espiritualidade.

Pausa no Brasil e preparação para nova viagem

Voltei para o Brasil no dia 15 de outubro de 2018 para matar a saudade da minha família e me preparar para uma nova aventura pela América Latina. Neste mês, sigo para o Panamá para explorar Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala e Belize, rumo ao México.

O que eu mais gosto na bike é a sensação de liberdade. A cada dia vou em direção aos meus sonhos. Nesses quase três anos de viagem, me superei, conquistei minha independência, aprendi a viver o hoje, a confiar nas pessoas, a observar oportunidades e, o principal, percebi que preciso de muito pouco para ser feliz."