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Aprendendo a apreciar a 'comida do povo' em Ho Chi Minh, no Vietnã

Matt Gross

New York Times Syndicate

09/06/2013 08h00

Em meados de 1996, recém-saído da faculdade, eu me mudei para a Cidade de Ho Chi Minh por uma razão muito simples: adoro comida vietnamita. Nos restaurantes de Virgínia, Maryland e Washington, aprendi a apreciar os pratos básicos dessa culinária – carnes grelhadas, ervas aromáticas, legumes e verduras frescos – e principalmente o "pho", a cheirosa sopa de carne e noodles que é o prato nacional. Conforme a formatura ia se aproximando, eu já sabia que queria morar no exterior e o Vietnã comunista, que tinha acabado de abrir as portas para o Ocidente, era a opção óbvia. De fato, a impressão era a de que não era nem escolha, e sim destino.

Porém, como logo descobri, gostar de uma culinária em especial não significa entendê-la - e a primeira vez que percebi isso foi umas duas semanas depois de ter chegado, quando entrei num restaurante do centro para almoçar. A energia insana das ruas – o fluxo incessante de motos, os operários barulhentos nas construções, os turistas – tinham desaparecido no calor do meio do dia. Hora de comer, tirar um cochilo, respirar e pensar longe do sol tropical.

Talvez só por causa dessa calmaria é que eu tenha notado o cara armado. Ele estava do outro lado da rua, de pé, sob o sol. Era vietnamita e devia ter uns 40 e poucos anos. Usava óculos escuros. Ao lado do corpo, levava o que parecia ser uma pistola/metralhadora Uzi. A seguir, desapareceu dentro de uma loja. Se a rua estivesse lotada de motos como uma hora antes, eu nem o teria notado.

Foi uma cena tão estranha que fiquei com vontade de comentar com alguém – qualquer um. O cara era bandido? Policial? Aí meu prato chegou e esqueci o caso completamente. Tinha ficado em dúvida sobre o que pedir, mas um nome no cardápio chamou a minha atenção: "luon nuong mia", enguia de água doce enrolada em pedaços de cana de açúcar (presa com um nó de cebolinha) na brasa. Assim que mordi, me apaixonei. A carne, suculenta e oleosa, tinha sido caramelizada pela brasa e tinha um gostinho de alho e óleo de peixe. Quando mordi a cana senti um caldinho doce explodindo na boca em contraste com a carne.

Eu sabia que era por isso que não podia ir embora. Aliás, era por isso que tinha ido para lá. A enguia estava tão gostosa que senti vontade de virar para o pessoal da mesa vizinha e dizer que o sacrifício tinha valido a pena.

Só que eu não tinha vizinho. Estava só no restaurante – só e confuso. Afinal, aquela parecia ser uma casa de qualidade; a enguia era a prova. Então, cadê todo mundo? Onde eu estava errado?

Aqueles primeiros meses no Vietnã foram cheios desse tipo de confusão. Tinha certeza de que, à minha volta, havia experiências gastronômicas fantásticas esperando para serem vividas - e, no entanto, eu não conseguia saber o que comer, como pedir, onde, quando e por quê. No almoço, por exemplo, eu sempre pedia "pho" no famoso Pho Hoa Pasteur, mas quando comentei o fato com meus alunos de inglês, eles ficaram confusos. Para eles, aquele era o café da manhã e não o almoço. Alto lá - mas tinha um monte de vietnamitas no Pho Hoa Pasteur! Meus alunos não falaram mais nada, talvez para não contradizer o professor ou só para me deixar mais à vontade. Ah, claro, eles disseram, você pode comer o que quiser à hora que quiser. "Khong sao", sem problemas.

Só que era problema, sim. E eu sabia o motivo. Nos restaurantes vietnamitas dos EUA, todos os pratos são servidos juntos – noodles, sopa, refogado, rolinho primavera - mas, no Vietnã, os restaurantes são dedicados geralmente a um só: "pho", "banh xeo" (crepe de arroz recheado com carne de porco e broto de feijão) e "hot pot" de cabrito. Acostumar-me a isso não foi fácil. Como conhecia apenas alguns pratos e sabia falar só meia dúzia de palavras em vietnamita, nem sabia o que pedir. Sabia que deveria cair de cabeça, às cegas, apontando para os pratos das mesas vizinhas e me divertindo com o resultado, mas o medo e a timidez me impediam de tentar. Tem coisa mais angustiante do que não saber o que comer?

Geralmente eu acabava nos restaurantes não vietnamitas dois bairros de turistas e mochileiros, em geral, também muito bons: opções italianas fantásticas graças ao tomate e manjericão frescos; uma clientela fiel de expatriados que exigiam só o melhor da cozinha japonesa e um século de colonialismo francês que resultaram na popularização do patê de foie gras e da sopa de cebola. Pena que cada uma dessas refeições me lembrava da minha incapacidade de penetrar na cultura local.

Depois de alguns meses, eu me mudei do quarto que alugava no sexto andar para outro, igual, no quinto, maior e com ar condicionado - mas a verdade é que troquei só porque tinha um pátio de lajotas ideal para almoços ao ar livre.

Bom, mas comprar o quê? Sanduíches de presunto e queijo brie? Refogado tailandês de carne moída com manjericão? Caminhando perto da Bui Vien Street um dia, vi um cara grelhando bistecas de porco na frente de um "com binh dan", instituição que pode ser traduzida como "a comida do povo". Esse tipo de casa existe por todo o país. Por menos de um dólar é possível comer um prato de arroz e uma porção de barriga de porco frita no óleo de peixe e açúcar, espinafre d'água (rau muong) refogado no alho e uma sopa de melão amargo com pedacinhos de carne de porco e cogumelos.

O problema é que os "com binh dan" nunca fizeram a minha cabeça. Talvez fosse por causa das mesas dobráveis, as cadeiras plásticas e os talheres gastos que pareciam deprimentes; talvez fossem os pratos, preparados com antecedência e expostos ao ambiente, que me desanimassem. Talvez fosse a falta de cardápio - ou quem sabe eu tivesse medo. Meu paladar até podia enfrentar um desafio, mas não a minha frágil psique.

Entretanto, quando senti o cheiro do "suon nuong", ou das bistecas, tudo mudou. Marinadas em alho, açúcar, óleo de peixe e chalotas, elas exalavam um aroma incrível, um misto de gordura e caramelização a que não resisti. Resolvi pedir para viagem – "suon nuong" sobre uma camada de arroz com "rau muong" e fatias de pepino – e levei a caixinha de isopor para o meu oásis no quinto andar, onde comi tudo na mais perfeita felicidade.

Não demorou muito para o "com binh dan" da esquina se tornar o meu restaurante favorito. Geralmente eu pedia um "suon nuong" perfeito, mas eles também faziam lula recheada com carne de porco e cozida até ficar macia, além de um peixe frito crocante. Ah, e tinha o ovo frito, que podia ir com tudo.

Comer no pátio de casa era ótimo, mas eram cada vez mais frequentes minhas visitas ao "com binh dan", e assim reparei no jeito com que as pessoas comiam: com palitinhos, talheres ou os dois. Estudei a forma como eles preparavam os molhos, às vezes enchendo o prato com um óleo de peixe escuro e umas lascas de malagueta ou despejando "nuoc cham", uma mistura de óleo de peixe, suco de limão e açúcar dos recipientes que havia em cada mesa (e eu achando que aquilo era chá gelado – opa!). As pessoas comiam sem muita cerimônia. A comida era boa, mas a casa também era uma "parada para reabastecimento". Eu observava o povo e imitava seus gestos, dia após dia, e nem me dei conta de que, pela primeira vez, estava comendo como os nativos.

Tampouco percebi que dominar o procedimento de uma refeição teria efeitos colaterais. Agora que já tinha pegado o jeito, podia tomar o café da manhã e jantar como bem entendesse. Não precisava mais me sentir culpado por começar o dia com café preto e croissants frescos por que sabia que, em algumas horas, estaria me deliciando com as bistecas.

Eu podia também fazer experimentos no jantar, comendo "dosas" no novo restaurante indiano, encontrar os amigos no Siberian Hunting Lodge ou me deliciar com escargots e mexilhões grelhados numa mecânica transformada em restaurante perto do rio Saigon - e se essas refeições fossem deliciosas ou sem graça, autênticas ou artificiais, eu sabia que no dia seguinte estaria comendo no "com binh dan".

Houve, porém, um senão nessa minha adaptação cultural: depois que entendi como funcionava o almoço, o restaurante que servia enguia na cana já não cabia mais na minha vida gastronômica – eu sabia que ele não era o único lugar para se comer no almoço e na hora do jantar eu tinha muito mais lugares para conhecer. Nunca mais voltei lá. O "luon nuong mia", tão fixo na minha lembrança, parece mais uma alucinação causada pelo sol, quase tão irreal como o cara da Uzi - a diferença é que foi real, tão real quanto a fumaça que sai das brasas no "com binh dan" da Bui Vien Street, de milhares de outras ruas ao redor de Saigon e de qualquer lugar onde o pessoal se reúna para comer.