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Lar de Victor Hugo, Guernsey é ilha de baías e penhascos no Canal da Mancha

Ann Mah

New York Times Syndicate

19/08/2012 07h50

Em outubro de 1855, Victor Hugo chegou a Guernsey, debaixo de chuva e vento, em busca de refúgio. Opositor ferrenho do Segundo Império de Napoleão III, foi primeiro banido de sua terra natal, a França, depois da Bélgica e da ilha de Jersey. Quando aportou na minúscula ilha, também no Canal da Mancha, o escritor precisava desesperadamente de asilo.

E ali o encontrou. A "rocha de hospitalidade e liberdade", como Hugo a descreveu na homenagem "Os Trabalhadores do Mar", obra que a tem como cenário, seria seu lar durante mais de quinze anos. Sem perder a concentração nem a determinação, ele despejou sua energia criativa em obras primas como o épico "Os Miseráveis" e a decoração de sua casa, Hauteville, a única que possuiu.

"O exílio não me afastou só da França, mas sim do mundo", ele escreveu numa carta. Nesse retiro isolado e selvagem, uma dependência britânica a pouco mais de 40 quilômetros da Normandia, no litoral da França, Hugo passou o período mais produtivo de sua vida.

Hoje, Guernsey é mais conhecida por oferecer proteção de outra espécie: é um paraíso fiscal, graças a leis financeiras brandas. Porém, a Guernsey de Victor Hugo – um lugar de contemplação silenciosa, caminhadas vigorosas à beira dos penhascos e baías sedutoras – ainda está presente, como estão também os elementos da vida do escritor na ilha.

Ilha inspiradora

A partir do momento em que seu barco ancorou no porto de St. Peter, a capital da ilha de 62 quilômetros quadrados, Hugo ficou maravilhado com sua beleza. "Mesmo com chuva e neblina, a chegada a Guernsey é esplêndida", ele escreveu numa carta à mulher.

Hoje, os viajantes que chegam de balsa, vindos da Inglaterra, de Jersey ou da França, têm a mesma visão do porto, com os barcos pesqueiros balançando gentilmente e as fileiras de casas subindo as encostas das colinas. Hugo se instalou numa delas, na parte alta da cidade: uma mansão chamada Hauteville, cercado pela família e um grupo de exilados - sem se esquecer de instalar Juliette Drouet, que foi sua amante durante décadas, numa casa modesta no fim da mesma rua.

Já como autor celebrado na época do exílio, Hugo foi atraído pelas Ilhas do Canal por causa de sua proximidade com a França e do governo independente (embora estejam ligadas à Grã-Bretanha há mais de mil anos, uma carta constitucional outorgada em 1204 ainda garante sua autonomia). Para Hugo, que não falava inglês – "Quando a Inglaterra quiser conversar comigo, deve aprender o meu idioma", disse ele, com sua grandiosidade típica – o francês e o dialeto falado pelos descendentes dos normandos que viviam na ilha eram essenciais para seu conforto.

  • Hazel Thompson/The New York Times

    Localizada entre França e Inglaterra, Guernsey é uma ilha de belas paisagens rurais e marítimas

Hoje, os moradores falam mais inglês que qualquer outra língua, mas o calor de sua hospitalidade permanece o mesmo. "É tão pequenina, todo mundo se conhece – de uma maneira boa", diz Mark Pontin, proprietário do Ship and Crown, o pub onde Juliette Drouet se hospedou logo que chegou a Guernsey. "A maioria dos moradores conhece as histórias de Victor Hugo e o povo tem bastante tempo para contar as lendas da ilha."

Quando ali chegou, Victor Hugo tinha 50 e poucos anos e acreditava que seu "refúgio atual", mais cedo ou mais tarde, se tornaria seu "provável túmulo". Impulsionado por esse medo mórbido – aumentado, sem dúvida, pelo isolamento – ele embarcou numa produção literária extraordinária, além de se dedicar à sua obra de arte mais palpável: a decoração de sua casa, Hauteville.

Em 1927, a neta de Hugo, Jeanne, e seus bisnetos, Jean, Marguerite e François, doaram a propriedade à Prefeitura de Paris, que a preserva como um museu, aberto de abril a setembro. Entrar na casa, cheia de objetos de arte e tapeçarias, é como penetrar na imaginação de Hugo, cheia de simbolismos escondidos, declarações desafiadoras e pitadas de humor. "A casa é uma viagem em si", diz Cedric Bail, assessor de conservação que foi meu guia no ano passado.

Casa fantástica

Hugo passou quase seis anos decorando a residência, buscando nos brechós da ilha itens funcionais que transformou em elementos decorativos. Graças a seu olho clínico, dezenas de baús de madeira se transformaram num console de lareira e o encosto das cadeiras Regência virou moldura para as janelas. Pequenos rostos e palavras – "trechos de propaganda", como descreve Bail – foram gravados nos painéis das paredes. Sobre a porta da sala de jantar lê-se a frase: "Exilium vita est" ("A vida é um exílio").

Tomadas por um clima opressivo e sombrio que Bail comparou ao de um presídio, os cômodos mais baixos foram dando espaço à luz conforme subimos as escadas. No topo da casa, uma estufa toda em vidro, incrivelmente clara, abriga os domínios de Hugo: um quarto espartano – onde o famoso mulherengo dormia ladeado pelas camas das empregadas – e um escritório com vista para o canal.

  • Hazel Thompson/The New York Times

    Victor Hugo teria demorado seis anos para terminar de decorar sua casa na ilha de Guernsey

Encarapitado aqui em seu "mirante", como ele o chamava, Hugo escrevia de pé, de frente para uma escrivaninha dobrável, olhando para as ilhas de Sark e Herm e, à distância, sua amada França. Depois de trabalhar durante a manhã, ele passava as tardes caminhando e explorando a ilha. Sua figura robusta se tornou tão familiar que a estátua de um parque próximo, Candie Gardens, o retrata assim, caminhando, a passos largos, o vento levantando-lhe a capa.

Visitei alguns dos refúgios de Hugo com Gill Girard, guia turística (e irmã de Pontin, o dono do pub) que contou muitas histórias pitorescas enquanto me levava de um lado para outro em seu carro. Ela parou para me mostrar o Creux es Faies ("Caverna das Fadas" no francês local), uma câmara funerária da era neolítica que fascinava o escritor. Em Pleinmont Point, no extremo sudoeste da ilha, nossos olhos venceram o nevoeiro para ver uma casa solitária que deve ter inspirado uma cena de "Os Trabalhadores do Mar". Atualmente, bunkers imensos de cimento bloqueiam a paisagem: construídos durante a Segunda Guerra Mundial, eles são um lembrete indesejável da ocupação alemã, embora as adoradas escarpas "expostas e destruídas" continuem lá.

"Liberdade até o fim"

Na minha última tarde na ilha, caiu uma chuva fininha. Sem me deixar abalar, refiz a caminhada favorita de Hugo, uma hora de andança ao sul do porto, ao longo dos penhascos à beira-mar. A floresta se fechava sobre mim e, às vezes, uma gota incômoda de chuva gelada escorria pelo meu pescoço, mas conforme avançava pelo caminho, todas as distrações foram levadas pelo rugido do mar, que enchia meus ouvidos mesmo que não pudesse vê-lo. Fiz uma curva e a baía de Fermain apareceu lá embaixo, suas águas claras brilhando em meio à neblina. Hugo vinha a essa enseada protegida (que até hoje só é acessível a pé) para nadar e ver a maré subir. Cercados por seus pensamentos, encontrava um pouco de paz.

  • Hazel Thompson/The New York Times

    Guernsey inspirou diversas obras de Victor Hugo, como o livro "Os Trabalhadores do Mar"

O escritor já tinha se preparado para morrer sem voltar a pôr os pés na França, declarando: "Viverei em exílio e liberdade até o fim". Porém, em 1870, o Segundo Império caiu e, triunfante, ele voltou a Paris, embora tenha visitado Guernsey mais três vezes antes de morrer, em 1885.

Apesar disso, a influência da ilha em Hugo é evidente – não só em "Os Trabalhadores do Mar", mas na vasta obra que produziu ali. A reclusão indômita foi, ao mesmo tempo, um peso e uma dádiva, e o ambicioso escritor aceitou ambos os aspectos sem reservas. "Um mês de trabalho aqui equivale a um ano em Paris", ele confessou numa carta ao escritor Auguste Vacquerie. "Foi por isso que me impus o exílio."

Como chegar lá e onde ir

Pode se chegar a Guernsey por balsa. O serviço é diário e operado pela Condor Ferries (www.condorferries.co.uk). A viagem leva três horas de Weymouth ou Poole, na costa sul da Inglaterra (60 libras, ida e volta), ou duas de St.-Malo, na França (65 euros, ida e volta). As empresas aéreas Aurigny (aurigny.com) e Flybe (flybe.com) oferecem voos diários a partir de Gatwick (Londres) e outros nove aeroportos britânicos. O serviço de ônibus da ilha passa por todas as principais atrações. Observação: Guernsey tem moeda própria, de valor equivalente ao da libra.

O que ver

A Hauteville House (38 Hauteville, St. Peter Port; 44-1481-721-911; victorhugo.gg) fica aberta de abril a setembro, de segunda a sábado. As visitas são feitas apenas com guia; é preciso fazer reserva. Ingresso: 6 libras.

Gill Girard (44-1-481-252-403; gillgirardtourguide.com; 6 libras) organiza caminhadas e passeios de ônibus pela ilha inspirados em vários temas, incluindo Victor Hugo e o romance "A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata".

A trilhas se espalham por quase 50 quilômetros acima dos penhascos, acompanhando a costa inóspita. Há mapas disponíveis no Centro de Informações de Guernsey (44-1481-723-552; visitguernsey.com).

Onde ficar

Praticamente ao lado de Hauteville fica o Hotel Pandora (Hauteville, porto de St. Peter; 44-1481-720-971; pandorahotel.co.uk; a partir de 47 libras), onde morou a amante de Hugo, Juliette Drouet. Oferece quartos confortáveis em decoração floral, em tons pastel.

Old Government House (St. Ann's Place, St. Peter Port; 44-1481-724-921; theoghhotel.com; a partir de 125 libras), antiga mansão do governo, oferece quartos luxuosos no centro da cidade.