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Norwich, uma cidade para quem é apaixonado por literatura, na Inglaterra

RACHEL B. DOYLE

New York Times Syndicate

17/04/2011 09h07

Em uma noite chuvosa, todas as fachadas de loja no centro da cidade de Norwich, Inglaterra, estavam escuras e fechadas com exceção de uma. A cada abertura da porta, sussurros cheios de expectativa escapavam da Book Hive, uma livraria independente que abriu em outubro de 2009, enquanto os clientes aguardavam a chegada de Alex Miller, o escritor australiano nascido no Reino Unido.

  • Jonathan Player/The New York Times

    Lojas e restaurantes em uma das ruazinhas da cidade inglesa.


Uma vez lá dentro, Miller caminhou lentamente até seu assento e começou a lembrar sobre a época em que morou em Paris nos anos 70, uma experiência que serviu de base para seu mais recente romance, “Lovesong”, que lhe rendeu a sexta indicação ao Prêmio Miles Franklin da Austrália, um importante prêmio literário. Estudantes e escritores de meia-idade estavam sentados no chão diante dele como pequenos alunos na hora de contar histórias, com seus copos de vinho tinto em cima de pilhas de traduções de poesia.

Nas perguntas da plateia, temperadas com sotaques irlandês, escocês e inglês, todos se maravilhavam com a mesma coisa: com o fato de Miller, um nome aclamado, mas longe de popular, não ser mais conhecido no Reino Unido. Mas nesta cidade de 137 mil habitantes no leste da Inglaterra, ele certamente era uma grande atração, lotando a loja até muito após o término da leitura. Posteriormente as conversas continuaram - o tipo de debate erudito, acompanhado por bebida, mais associado a Bloomsbury do que a este condado predominantemente rural.

Norwich, a duas horas de trem ao nordeste de Londres, tem cada vez mais se tornado um refúgio para os escritores que fogem do ritmo frenético da cena editorial da capital. À primeira vista ela parece ser apenas mais outra cidade medieval charmosa, com um castelo fantasticamente preservado e uma catedral com 900 anos de idade. Mas olhe melhor e você verá o manancial de leituras de autor e festivais literários, com palestras recentes de vencedores do Prêmio Booker, como John Banville e Penelope Lively.

Os cafés aconchegantes nas velhas ruas estreitas da cidade estão repletos de escritores aspirantes debruçados sobre laptops, sonhando em se tornar o próximo Ian McEwan ou Kazuo Ishiguro, cujas carreiras começaram aqui, no conceituado programa de pós-graduação de escrita criativa da Universidade de East Anglia.

Ishiguro ficou tão impressionado com Norwich e seus arredores que a usou como inspiração para seu romance de 2005, “Não Me Abandone Jamais” (apesar do livro realmente se passar em East Sussex, a adaptação para o cinema de 2010 foi em grande parte filmada em Norfolk County, lar de Norwich). “Eu amo o vazio e a atmosfera”, ele disse. “O cenário é bastante singular. Há uma sensação de estar em um canto perdido.”

Ele também admira sua população passional e que lê muito. “Ela sempre será uma cena literária no melhor sentido da palavra”, ele acrescentou, “onde as pessoas se reúnem e falam sobre literatura”.

Depois de Londres, Norwich era a cidade mais importante da Inglaterra na Idade Média. Notáveis 31 igrejas medievais sobreviveram. Com a diminuição do número de fiéis devotos, muitas dessas igrejas imponentes e bem-preservadas ajudaram a alimentar uma tradição literária ao receberem sessões de leitura, encontros, aulas de redação e produções teatrais.

A religião figurou de modo proeminente na vida e obra de uma das primeiras figuras literárias de Norwich. A mística conhecida como Juliana de Norwich escreveu, a partir de 1373, suas “Revelações do Amor Divino”, muitas vezes citado como o primeiro livro em inglês de autoria de uma mulher a ser publicado. Juliana viveu como anacoreta, uma espécie de eremita religiosa, e provavelmente permaneceu dentro de uma pequena cela de pedra durante seus aproximadamente 40 e poucos anos de vida monástica. Acreditando estar em seu leito de morte (isso ocorreu não muito tempo depois da Peste Negra ter atingido a Inglaterra pela segunda vez), Juliana escreveu sobre as 16 visões de Cristo que teve.

“Ela é bastante incomum para a época, já que foi ela mesma quem escreveu”, disse Tom Licence, o autor de um livro sobre eremitas e reclusos medievais. O manuscrito de Juliana sobreviveu por quase três séculos sob os cuidados de freiras até ser finalmente publicado em 1670. Comparado ao que Juliana de Norwich experimentou, a longa espera dos escritores modernos para encontrar uma editora pode parecer quase razoável.

Hoje, aqueles que visitam a Igreja de São Julião, em Norwich, podem andar em uma reconstrução da cela de Juliana, que é mal iluminada e decorada com iconografia religiosa. Virando a esquina, Dragon Hall, um salão de comércio construído em 1430, oferece um vislumbre mais autêntico da cidade em que Juliana habitava. O grande salão preservado, emoldurado em madeira, já foi uma vitrine para bons vinhos, roupas e especiarias.

Juliana, porém, não reconheceria a nova adição de vidro à Catedral de Norwich, um centro educativo e atendimento ao visitante cheio de luz, que foi adicionado à igreja do século 12 em 2009. Em uma noite há pouco tempo, ele recebeu uma apresentação de “A Noite do Iguana” de Tennessee Williams. Os atores bebiam rum (de mentira) e gritavam uns com os outros com sotaque texano misturado com britânico, enquanto as torres da igreja eram refletidas nas paredes de vidro.

Os interessados pelas ofertas mais velhas da catedral podem visitar a Dean and Chapter’s Library, um local isolado onde os visitantes podem folhear as primeiras edições da literatura anglo-saxônica e velhos textos de teologia com encadernações da cor das folhas de outono.

Na Igreja de São Swithin, construída no século 15 e reformada como o Centro de Artes de Norwich em 1980, são os escritores contemporâneos que são tratados com reverência. O Centro dos Escritores de Norwich organiza um evento nas noites de terça-feira, no qual escritores locais leem trechos de dez minutos de seu trabalho.

Mesmo quando a antiga igreja volta sua atenção à música (bandas de rock independente e DJs de música techno costumam tocar nos fins de semana), os visitantes ainda estão expostos a jogos de palavras. Antes de uma apresentação recente da dupla eletrônica Gold Panda, da vizinha Essex, jovens usando coletes xadrez, onesies (macacões-pijama com pés) com estampa de zebra e botas de cano curto olhavam curiosamente para uma exposição de tipografia, parcialmente inspirada por pinturas de paisagens.

  • Jonathan Player/The New York Times

    Em 2006, um artista levou tinta branca e pincéis finos e escreveu todas as 40 mil palavras do livro 'Utopia' de sir Thomas More, de 1516, em sua fachada de tijolos


Em nenhum outro lugar o romance de Norwich pela palavra escrita é expresso de modo mais claro - e literal - do que em uma velha usina elétrica próxima, à beira do rio. Em 2006, um artista levou tinta branca e pincéis finos e escreveu todas as 40 mil palavras do livro “Utopia” de sir Thomas More, de 1516, em sua fachada de tijolos. Antes marcado para demolição, o prédio se tornou um símbolo do interesse permanente da cidade.

Com tanta atividade literária, alguém poderia pensar que Norwich é o lugar onde mais se lê em toda a Inglaterra - e pode ser. De acordo com o Chartered Institute of Public Finance and Accountancy, a Norfolk and Norwich Millennium Library, que foi inaugurada em 2001, é a biblioteca mais popular do Reino Unido por quatro anos consecutivos, com cerca de 1,5 milhão de visitantes no ano passado.

De fato, às vezes parece que a cidade inteira está obcecada por livros. O Library Bar & Grill, um dos restaurantes mais conhecidos de Norwich, é um prédio histórico que já foi uma biblioteca. O salão de jantar ainda conta com as estantes de carvalho originais e o cardápio detalha as taxas de associação do século 19: 1 libra para senhoras, 2 libras para os homens. A entrada da próxima Millennium Library - em um prédio moderno elevado, com fachada de vidro, em frente à igreja medieval onde o escritor e médico do século 17, sir Thomas Browne, está enterrado - é gratuita.

Após um dia árduo de trabalho, os escritores se reúnem no Frank’s Bar na Bedford Street, o ponto de fim de noite favorito para os estudantes com inclinação intelectual. Diferente dos pubs tradicionais, o bar com papel de parede verde, com seus muitos dicionários e tabuleiros de Palavras Cruzadas, fica aberto até as 2h30 da manhã nos fins de semana, para que as discussões literárias possam continuar noite adentro.

Em uma recente noite de outono, Andrew Parrott, um formando do programa de escrita criativa da Universidade de East Anglia, especulava sobre o motivo de Norwich ser uma cidade tão fantástica para literatura. “Há algo nos interiores de todos os prédios antigos que força a aproximação das mesas”, ele disse. Ele olhou ao redor, com seus olhos parando em uma mulher tatuada falando em tom urgente com seu companheiro de camisa de flanela. “É uma cidade muito boa para escutar a conversa alheia.”
 

  • Jonathan Player/The New York Times

    A Igreja de São Swithin, construída no século 15, foi reformada como o Centro de Artes de Norwich em 1980

Se você for

O National Express East Anglia (44-8456-0072 45; nationalexpresseastanglia.com) tem serviço frequente para Norwich com saída da estação Liverpool Street de Londres, com passagem de ida e volta a partir de 16 libras, ou US$ 24,50, com a libra cotada a US$ 1,53.

A Book Hive (53 London Street; 44-16032-19268; thebookhive.co.uk) é uma livraria independente com sessões regulares de autógrafos, leituras e eventos.

A Universidade de East Anglia (Lecture Theater 1, Universidade de East Anglia; www.uea.ac.uk/litfest) promove leituras e eventos, assim como festivais literários. Os ingressos para os eventos individuais custam 6 libras.

O Library Bar and Grill (4a Guildhall Hill; 44-16036-16606; thelibraryrestaurant.co.uk) fica em uma ex-biblioteca do século 19. Pratos ingleses modernos têm um melhor preço na hora do almoço (cardápio com três pratos, 11,95 libras) do que no jantar.

Igreja de São Julião (8 Kilderkin Way; 44-16036-22509; julianofnorwich.org).

Dean and Chapter’s Library (Catedral de Norwich; 44-16032-18327; www.cathedral.org.uk).

Centro de Artes de Norwich (51 St. Benedict’s Street; 44-16036-60352; norwichartscentre.co.uk).

Norfolk and Norwich Millennium Library (The Forum, Millennium Plain, Bethel Street; 44-16037-74709; theforumnorwich.co.uk/explore/millennium-library) é a biblioteca mais visitada no Reino Unido e promove regularmente debates e leituras.