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Passeio no Himalaia mostra devoção religiosa e paisagens floridas

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Michael Benanav
New York Times Syndicate

No fundo do desfiladeiro que corta o Himalaia, o rio Alaknanda corre sob uma ponte pequena de madeira. À margem direita fica um vilarejo indiano movimentado, Govindghat, com sua única rua lotada de hotéis simples e lojas oferecendo itens religiosos sikh e souvenires; à esquerda, um homem de colete de lã e boné de esqui me cumprimentou com uma questão no olhar.

"Quer cavalo?", ele perguntou, torcendo para que eu contratasse suas mulas para me levar trilha acima a Ghangaria, uma aldeia isolada nas montanhas, no estado de Uttarakhand, na Índia, base para a visita ao lendário Parque Nacional Vale das Flores -- onde cerca de 300 variedades florescem na alta temporada -- e ao Hemkund, lago e local sagrado de peregrinação sikh no Garhwal. "Quer cavalo?", ele repetiu. "Quinhentas rúpias."

Até pensei no assunto. Só se pode chegar a Ghangaria a pé, a cavalo ou helicóptero (possibilidade muito além do meu orçamento). O caminho de quase treze quilômetros vai de 1.200 a 3.050 metros acima do nível do mar. Já era tarde e eu só tinha comido uns biscoitinhos de manhã -- se bem que, com o dia ensolarado, eu estava cheio de disposição e energia. Mesmo com o preço caindo para 400 rúpias (menos de US$ 8) eu recusei e me dirigi ao primeiro trecho sinuoso sabendo que poderia comer Maggi masala (sopa de noodles em estilo indiano) numa barraquinha e alugar um "cavalo" se mudasse de ideia (o que acabou acontecendo).

O caminho de pedras atravessava um vale ladeado por encostas íngremes sobre as quais se erguiam desfiladeiros nus. Lá embaixo, o Lakshman Ganga, afluente do Alaknanda, rugia com uma força impressionante, enquanto a neve derretida escorria pelos rochedos imensos.

  • Micha­el Benan­av/The New York ­Times­

    Peregrinos sikhs se banham em Hemkund, local do Himalaia sagrado para sua religião

Entre o início de junho e começo de outubro -- exceto quando desabamentos causados pelas moções bloqueiam as estradas nas montanhas -- centenas de peregrinos sikhs percorrem a trilha todos os dias. Quando lá estive, no final de setembro passado, ela estava lotada de gente que ia visitar um dos lugares mais sagrados para a religião. Muitos viajavam com a família, a maioria liderada por homens barbudos com turbantes coloridos. Alguns usam a kurta tradicional ou o robe azul do guerreiro; outros, jeans e blusa de lã. Os mais devotos andavam descalços. Os que não tinham condições de caminhar subiam carregados pelas mulas; havia gente em liteiras de madeira carregadas nos ombros de quatro homens e cadeiras de vime nas costas dos guias, como se fossem mochilas -- essas duas últimas opções com certeza faziam parte da categoria "coisas indianas nunca vistas nos EUA".

Peregrinação

Pouco antes do pôr-do-sol cheguei a Ghangaria, onde fazia tanto frio que, quando me dei conta, estava usando todas as roupas quentes que tinha levado -- de uma vez. O meu quarto de hotel, como todos os outros da cidade, não tinha aquecimento; água quente, só de balde, por uma pequena quantia. A vantagem é que havia uma pilha de cobertores e os preços eram negociáveis (eu paguei 300 rúpias, ou US$ 5,50, com o dólar a 55 rúpias).

Quando saí para Hemkund na manhã seguinte, já havia vários peregrinos a caminho. Teríamos que subir outros 1.200 metros em 6,4 quilômetros para chegar ao lago sagrado, que fica a 4.328 mil metros acima do nível do mar. O lugar tinha que ser especial para inspirar toda aquela gente -- cuja grande maioria não poderia ser descrita como "cheia de disposição" -- a fazer esse tipo de caminhada. Era óbvio que havia algo além da beleza natural, pensei eu enquanto subia.

As peregrinações, religiosas ou não, são inspiradas por histórias -- algumas verdadeiras, outras fictícias e algumas ainda em que ficção e realidade são indistinguíveis. Independente da veracidade, as histórias fazem sentido para muita gente e os locais onde acontecem acabam se tornando monumentos na geografia da nossa imaginação. São lugares que parecem gritar de dentro de nós, encorajando-nos a ir ao seu encontro, prometendo nos completar de alguma forma se formos até eles. Pense em Jerusalém ou Meca, o Marco Zero em Nova York ou mesmo Graceland; não são apenas pontos num mapa, mas locais cheios de significado que atraem os viajantes. E quando vamos a seu encontro -- quando chegamos a esses lugares que, através de suas histórias chegaram até nós -- é como se o nosso mundo interior se fundisse com o exterior. Pelo menos um pouquinho.

  • Micha­el Benan­av/The New York ­Times­

    Viajantes só podem chegar à aldeia de Ghangaria a pé, a cavalo ou de helicóptero

A história por trás do Hemkund tem a ver com o décimo e último guru sikh, Gobind Singh, que viveu de 1666 a 1708. Indiscutivelmente o fundador mais influente da religião, foi ele que introduziu várias das práticas que definem a crença até hoje. Ele escreveu que, na vida anterior, tinha meditado num lago nas montanhas, cercado por sete picos; ali, se tornou um só com Deus, física e espiritualmente, antes de reencarnar como o grande guru.

Durante séculos a localização de Hemkund permaneceu um mistério, até ser redescoberta em 1934 por um oficial do Exército reformado chamado Sohan Singh. Na verdade era um lago chamado Lokpal, há muito sagrado para os hindus. Hoje em dia, estima-se que mais de 150 mil pessoas visitem o local todos os anos.

Embora eu já tenha feito peregrinações pessoais antes --  ao vilarejo na Ucrânia onde minha avó morou num gueto durante a Segunda Guerra Mundial e onde a maior parte da sua família morreu; à paisagem surreal de Wadi Rum, na Jordânia, por onde T. E. Lawrence, meu herói de infância, já andou -- não pensei em minha viagem a Hemkund nesses termos. Eu estava ali como turista, não como peregrino, mas mesmo para uma pessoa que não seja da fé, o lago sagrado no alto do Himalaia era irresistível. E como alguém com um interesse irremediável pelas religiões do mundo, esperava entender o que significava para os sikhs estar naquele lugar sagrado principalmente depois da dificuldade de chegar até ali.

Depois de sair de Ghangaria e percorrer uma trilha sinuosa durante 2,5 horas, cheguei ao lago cercado de picos rochosos. Muitas pessoas mergulhavam nas águas geladas, comiam dal (sopa de lentilha) feita por voluntários no langar (cozinha comunitária) ou descansavam. Os ritmos hipnóticos dos kirtans, ou canções devocionais, saíam de um gurdwara (templo) cujo telhado de metal multiangular fazia com que se parecesse com uma espaçonave.

Lá dentro, os fieis se sentavam num tapete vermelho de frente para um dossel dourado sob o qual um líder espiritual abanava um leque de penas sobre uma cópia das escrituras sagradas dos sikhs. À sua frente, uma mesa decorada com flores de plástico, onze tigres de pelúcia e um leopardo. Os peregrinos se mostravam excessivamente simpáticos e muitos falavam inglês. Pareciam felizes em ver um estrangeiro, ávidos por contar suas experiências.

  • Micha­el Benan­av/The New York ­Times­

    Peregrinos sikhs rezam em templo erguido entre as montanhas indianas do Himalaia

"É pura inspiração", disse Sukhmeet Singh, indiano de nascimento, mas que hoje vive na Austrália. Viajava com os pais, a mulher e dois filhos. Para ele, a jornada em si parecia tão importante quanto o destino -- e a comparou aos seminários de Tony Robbins que fez, dizendo que superar o desafio da trilha o fez sentir invencível.

Proteção e provações

Muita gente se sentiu da mesma maneira. Um homem me contou que os doentes mergulhavam no lago para se curar, mas a maioria com quem conversei mencionou Hemkund como um local de purificação que os afastaria de "todos os demônios" e os protegeria de tentações futuras por algum tempo.

No langar, Aman Jot Singh, de 23 anos, de Punjab, estava sentado ao lado de uma panela do tamanho de uma banheira servindo chá quente. No tempo livre, lia as escrituras sikh no smartphone. E me contou que todo dia saía de Ghangaria para trabalhar como voluntário na cozinha e à noite voltava para casa. O verão inteiro. Para ele, era uma forma de penitência.

"Eu era o que se podia chamar de playboy; gostava de beber e namorar, cortava o cabelo. Tinha um problema grave com meu ego, mas, no ano passado, decidi que tinha que mudar e viver direito. Ajudou muito. Foi a melhor coisa que fiz na vida."

Os efeitos de Hemkund, disse ele, o enchiam de paz e o mantinham no caminho certo muito tempo depois que voltava para casa.

No meio da tarde, desci para Ghangaria para mais uma noite gelada.

  • Micha­el Benan­av/The New York ­Times­

    Mulher é transportada sobre os ombros de quatro homens nas trilhas íngremes do Himalaia

Na manhã seguinte, fui até o Parque Nacional do Vale das Flores, a alguns quilômetros rio acima, no Pushpawati. A trilha atravessava um desfiladeiro estreito que se abria para uma paisagem tão sublime -- e tão diferente do lado de Ghangaria -- que me senti transportado para outro mundo.

O vale, de pouco menos de cinco quilômetros, era cercado pelas bases nevadas de picos altíssimos. Riachos corriam a milhares de metros lá embaixo, no fundo dos desfiladeiros, cercados por prados verdejantes. Os tons de verde e amarelo e marrom e cinza da terra, misturados a uma miríade de outras cores, mudavam o tempo todo conforme o sol atravessava as nuvens. Percorri as encostas com os olhos na esperança de ver um leopardo-das-neves, um urso ou um cervo-almiscarado, mas não vi nada.

A florada pela qual o vale é famoso, já tinha passado. Em julho e agosto, durante as monções, dizem que o solo se transforma num verdadeiro arco-íris, uma verdadeira festa botânica. Quando estive lá, só restavam alguns resquícios das flores.

Porém, não me arrependi, pois a viagem após as monções implicava numa chance muito maior de aproveitar o bom tempo e muito menor de sofrer com os atrasos -- ou coisa pior -- causados pelas tempestades. E o vale, com ou sem flores, já era paradisíaco por si só.

Havia muito poucas pessoas. Seguindo a trilha, só e sem ser observado, pude me render ao assombro puro e simples sem precisar me conter pela consciência.

De certa forma, minha experiência no Vale das Flores foi semelhante ao que os peregrinos sikhs buscam em Hemkund: talvez não a purificação, mas paz e o contato com algo muito maior do que eu mesmo. O Himalaia.

Se vou repetir a peregrinação ao vale no futuro? Talvez. Seria legal ver as flores.

SERVIÇO

Hemkund fica aberto de 1º de junho a 5 de outubro; o Parque Nacional do Vale das Flores, de 1º de junho a 31 de outubro. Ingresso para estrangeiros: 600 rúpias ou US$11 por três dias.

Michael Benanav é o autor de "Men of Salt: Crossing the Sahara on the Caravan of White Gold".

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