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Pelourinho sofre com abandono e violência em Salvador

Raíza Tourinho

De Salvador, especial para a BBC Brasil

23/10/2012 17h14

"O Pelourinho é magico". Assim define o centro histórico de Salvador o artista plástico Washigton Arléo, que entre idas e vindas, há 15 anos, expõe sua emoção traduzida em telas nas ruelas do Pelô, como o bairro é carinhosamente conhecido pelos soteropolitanos.

Contudo, o Pelourinho, reconhecido como Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco, vêm assistindo silenciosamente a magia de suas cores desbotar. E nos becos de pedras irregulares se avistam cada vez menos turistas, onde outrora havia "engarrafamento de gente", nas palavras do artista.

Entre ausência de programação cultural, criminalidade e má conservação do patrimônio, a degradação do Pelourinho chamou a atenção até da organização World Monuments Fund, que trabalha pela proteção de monumentos e patrimônios ao redor do globo.

A instituição, que visitou 30 cidades em todo o planeta, listou neste ano o centro histórico de Salvador como um dos patrimônios mundiais mais ameaçados pelo descaso governamental ou pela ação da natureza.

Mas, aos poucos, o centro histórico ganha novo fôlego. Devido à Copa de 2014, um grande projeto de requalificação está em andamento no local, com a revitalização das praças e dos casarões.

Na última sexta-feira, 19 de outubro, o governo estadual anunciou investimentos na infraestrutura do centro histórico da ordem de R$ 700 milhões, com previsão para a implantação de ciclovias, novo sistema de iluminação pública e construção de uma grande passarela.

Já o 18º Batalhão da Polícia Militar, que atua na área, teve cerca de 130 homens incorporados somente neste ano, somando quase 500 policiais.

Insegurança

O aumento do efetivo policial ainda não foi suficiente para afastar o estigma de violência do Pelourinho que, segundo comerciantes, viu os índices de até dez assaltos diários zerarem nos últimos meses.

Ao menos nas principais vias do centro, o policiamento é constante. Embora não vaguem mais pelas ruas principais, não é preciso ir muito longe para ver crianças, jovens e adultos mumificados pelo crack, trafegando nos becos, indo de quando em vez para o circuito turístico faturar alguma moeda de troca, seja pedindo esmola e comida, seja estacionando os carros.

Apesar do reforço no policiamento, os cariocas Denise e Josino Araújo não gostaram da grande quantidade de pessoas em situação de rua no centro histórico. ''É só insegurança. Muita pivetada'', disse Denise.

  • Jotafreitas/Bahiatursa

    A World Monuments Fund listou o centro histórico de Salvador como um dos patrimônios mundiais mais ameaçados pelo descaso governamental

Josino, já acostumado aos perigos existentes nas metrópoles brasileiras, acredita, porém, que a falta de infraestrutura hoteleira e o péssimo estado de conservação asfáltica da cidade são mais problemáticos. ''Cidade grande é isso mesmo. O Rio também é perigoso. O que eu acho que eles poderiam fazer é transformar esses meninos em agentes do turismo'', sugere.

Na primeira vez que vieram a Salvador, o casal paulista Daniela e Diogo Silva foi logo conhecer o Pelourinho. Apesar de afirmarem terem gostado do local, os habitantes da cidade da garoa nutriam mais expectativas. “A gente sempre espera que esteja mais bem cuidado”, disse a garota.

Assédio

"Olha 'doutô' essa pulseira, abençoada pelo Senhor do Bonfim, pode levar que é de presente", afirma um vendedor ambulante, com os braços tomados por dezenas de colares e pulseiras, vendidos por dez vezes o valor original, acusando a estratégia do "presente".

A quantidade exígua de turistas no Pelô faz com que qualquer pessoa com um olhar esvoaçante ou uma câmara na mão seja identificada como um potencial cliente e ganhe a atenção dos camelôs e dos meninos pedindo esmolas. "Não me incomoda", conta a cearense Carla Garcia, logo após ser abordada por um. O marido Antenor Santos, baiano de nascimento, discorda. "Não precisa disso. Quando a gente quer comprar vai atrás", justifica.

  • Vista aérea do Pelourinho, em Salvador

    Vista aérea do Pelourinho, na capital baiana

Mas o semblante estampado na maioria dos turistas, principalmente estrangeiros, denuncia o cansaço causado pela abordagem excessiva dos ambulantes. As negativas dos pedidos de entrevistas, contadas com o auxílio das duas mãos, demonstravam a impaciência diante dos nativos. "No português" foi a frase mais escutada pela reportagem. E não adianta rebater: "¿Hablas español?" ou "Do you speak english?".

"Yes, but no", responde finalmente um, mal-humorado. Acompanhado da família, um alemão até topa justificar o porquê não fala: "Muito assédio", afirma, andando o mais rápido que pode.

Coração

Se quem visita o Pelourinho consegue sentir no ar a história exalada pelos antigos casarões e igrejas seculares, quem habita as vielas do centro histórico vivencia na pele a malandragem, datada da época em que as primeiras gotas de sangue dos escravos castigados calçaram o Pelourinho.

Capoeirista há 40 anos, mestre Berimbau, que ganhou o codinome por não largar o instrumento nem na hora de dormir, apresenta-se com seu grupo diariamente no Terreiro de Jesus, uma das principais praças do centro histórico. "Para mim, o Pelourinho é tudo. É um palco. Só que esse palco está muito desorganizado", diz.

Ele enumera os problemas que levaram a degradação do local, da ausência de banheiros públicos aos buracos nas praças, passando pelo lixo. "Tá faltando é tudo", sinaliza. Berimbau reclama também dos comerciantes locais que não apoiam os capoeiristas, mas dão comida para os meninos de rua, que por sua vez a trocam pelo crack.

O comerciante Geraldo Miranda, vulgo Geraldão, rebate a crítica do mestre afirmando que a doação é uma espécie de "proteção", que evita que os meninos roubem e afastem os clientes. "Todos nós somos culpados. Mas o crack aqui é uma questão de saúde pública: quando você recupera um, perde dez", lamenta.

Criado no Pelourinho, aos 60, Geraldão indigna-se com o abandono relegado ao local nos últimos anos. Segundo ele, de terceiro destino turístico mais procurado do Brasil, Salvador amarga a sétima posição, queda refletida pela quantidade de lojas fechadas – de 400 em funcionamento, só sobraram 80. A de Geraldo foi uma das que não resistiram. Vivendo com o salário de aposentado, ele joga dominó com os amigos, esperando que os dias sombrios passem para ele reabrir sua loja de souvenir. "Aqui é o maior shopping aberto do mundo, com as lojas todas fechadas. O Pelourinho é o coração da Bahia. O governo precisa dar mais carinho a esse espaço", insiste.

O artista Arléo vai mais longe ao afirmar que o Brasil nasceu no Pelourinho sendo este, na verdade, o coração da nação brasileira. "O Brasil foi modelado aqui. A questão do Pelourinho não é municipal, é nacional".