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Roteiro pela costa turca do Mar Negro traz opções para provar anchovas

Robyn Eckhardt

New York Times Syndicate

28/04/2013 08h10

"Quer dizer então que você está aqui por causa das anchovas", disse com um sorriso nos cantos da boca o barman do Sehrazade, um bar com jeitão meio duvidoso em Unye, Turquia.

Troncudo, com nariz de boxeador e jeito durão, o homem tinha mais cara de gângster do que de dono de bar, mas quando contei por que estava naquela cidadezinha turca do Mar Negro, ele se mostrou mais simpático. Balançou a cabeça e pegou o celular no bolso.

Vinte minutos depois, um garoto ainda com o uniforme da escola entrou no estabelecimento (397A Hukumet Caddesi) com uma forma de alumínio. Meu novo amigo pegou a assadeira e colocou na minha frente, tirando a tampa com um movimento floreado e, com isso, levantando uma nuvem de vapor. Dentro, havia mais ou menos meio quilo de anchovas ligeiramente torradas, do tamanho do meu mindinho, enfileiradas em espetinhos de madeira.

"Come, come!", ele mandou, espremendo um gomo de limão sobre os peixes e tirando-os dos espetos com uma faca para que absorvessem o caldo que havia no fundo. Não entendi direito de onde vieram ("De uma cozinha aqui perto" foi a única coisa que ele disse), mas estavam espetaculares: frescas e firmes, salgadinhas e oleosas no ponto certo.

Aquelas não eram as primeiras anchovas do dia, muito menos as últimas na semana que eu tinha pela frente. Estava fazendo um tipo de peregrinação, inspirado pela minha obsessão pelo peixe - que, por sinal é compartilhada por muitos turcos. Para os connoisseurs do "hamsi" (como são chamadas as anchovas em turco), os espécimes gorduchos do gélido Mar Negro são superiores aos pescados no Mar de Mármara, ao sul de Istambul e do Bósforo. A temporada no Mar Negro – que geralmente começa mais ou menos em outubro e vai até fevereiro – há séculos é aguardada com muita expectativa.

Em meados do século 17, o viajante otomano Evliya Celebi escreveu que no porto de Trabzon, na costa leste, "os pescadores no porto ... usam trompetes especiais feitos de madeira antiga. Só precisam soprá-lo uma vez e, segundo a vontade de Deus, se as pessoas que estiverem nas mesquitas ouvirem, sairão imediatamente e irão correndo procurar seu 'hamsi'". Hoje em dia, os moradores começam a degustar o peixe tão logo a temporada permita, duas vezes por dia até durante o auge, quando chega a ser vendido a 3 liras turcas (cerca de US$ 1,70) o quilo.

Levado pelo mesmo tipo de paixão, meu plano era fazer uma viagem regada a anchovas ao longo do trecho de 480 km de litoral do Mar Negro, na Turquia central, com várias paradas para saborear o melhor da pesca do dia - que, por sinal, descobri ser totalmente sazonal: disponível num dia, em falta no outro.

Minha aventura começou de um jeito não muito promissor no aeroporto de Samsun, a uma hora e meia de voo de Istambul, quando o funcionário da locadora de carros disse que o tempo, quente demais para a época, tinha reduzido a duração da temporada deste ano.

Claro que só havia "hamsi" de Mármara quando cheguei a Giresun, a 176 km ao leste; apesar disso, no Yetimogullari Restoran (Gazi Caddesi, Findikkale Arasi; 90-454-212-0839), onde os candelabros, espelhos e poltronas forradas de couro branco destoavam dos pães caseiros e das sopas e guisados caseiros, o "hamsi" assado com cebolas, pimentas verdes e tomates foi um bom aquecimento.

O dia seguinte trouxe céu cinzento, uma garoa fria e um vento frio do norte, desagradável para o viajante, talvez, mas perfeito para o caçador de anchovas. Caminhando morro acima do porto rumo às ruínas de um castelo bizantino, passei por pescadores exibindo o peixe em carrinhos vermelhos, atraindo os clientes com gritos que anunciavam: "As anchovas chegaram!".

  • David Hagerman/The New York Times

    Um jardim propício para tomar chá no calçadão de Unye

Depois de um giro rápido pelo mercado de peixes - que se resumia a um grupo de barraquinhas em forma de L a um quarteirão do porto - fui para Emre Balikcilik (51 Fatih Caddesi; 90-454-212-7200), uma peixaria e café onde o resultado da pesca do dia é preparado numa cozinha aberta. Turken Tunan, dona da casa com o marido, é especialista em "tava", a técnica regional de preparo do peixe. Ela mergulhou minhas anchovas na farinha de milho, dispôs o peixe numa formação em espiral na frigideira e fritou tudo em fogo alto, virando todas feito omelete ao longo do processo. O resultado foi que ganharam uma crocância e um perfume fantásticos, sem um pinguinho de excesso de óleo.

Para a "buglama" ("Essa anchova não é 'hamsi', é bluefish", ela fez questão de frisar), Tunan colocou fatias finíssimas de alho e descascou e picou tomates sobre o peixe, salpicou tudo com pimenta em flocos e complementou com uma porção cavalar de manteiga. Depois de quinze minutos de forno, os tomates derreteram sobre o peixe, resultando num lago de molho de tomate aveludado.

De Giresun, fui para o oeste, saindo da estrada principal logo depois de Ordu para entrar numa vicinal sinuosa pontilhada por pequenos portos lotados de pesqueiros. Numa península verdejante, me deparei com uma igreja ortodoxa do século 19, construída no local em que havia um templo dedicado a Jasão (aquele dos Argonautas). Um pouco mais à frente, parei para outro tipo de adoração no Vonali Celal (Caka Tunel Mevki; 90-452-587-2137), um restaurante excêntrico e adorável encarapitado sobre as rochas ao lado de uma loja de picles de 50 anos.

Suleyman, irmão caçula do fundador e xará do restaurante, me levou para ver as prateleiras em que havia centenas de frascos e potes com tudo, desde cerejas amarelas e ameixas ácidas a cabeças inteiras de alho e berinjelas recheadas. À mesa aquecida pelo forno à lenha, comi o melhor "hamsi tava", que chegou com uma guarnição de rodelas de cebola e pimentão verde. Destaque também para pratos regionais como os pãezinhos de milho fritos, acompanhados de favas refogadas em conserva e a fritada feita com cebolinhas chamadas "sakarca". A seguir veio Unye, onde dividi meu tempo entre a degustação de anchovas, visitas às incríveis mansões otomanas da cidade, compras nas lojas de produtos de cobre e passeios ao longo do calçadão da orla.

Na manhã seguinte ao meu banquete inesperado no Sehrazade, o tempo ficou com cara de primavera – e o "hamsi" desapareceu. Acabei me virando com um "buglama" (descobri que havia mais versões desse prato do que cozinheiros na região) preparado com fatias grossas de bonito, no Iskele Restoran (67 Hukumet Caddesi; 90-452-323-4469), uma casa elegante frequentada por executivos, com vista para a praia. Depois, segui para o oeste.

Os 256 km até Sinop foram os mais difíceis da viagem: quatro horas de engarrafamento por causa de obras na pista que ficaram ainda pior por causa da construção de uma passarela no centro de Samsun - mas acabou valendo toda a pena porque Sinop é uma cidadezinha antiga e adorável, espalhada à volta do porto e cheia de casas de chá, das quais era possível admirar ruínas que possivelmente datavam dos tempos romanos.

Beleza física à parte, a principal atração local é o Okyanus Balikevi (Kurulus Caddesi; 90-368-291-3650), um restaurante de família que dá para o porto e onde comi o melhor "hamsi" de toda a viagem. Ali eu conheci Mert Kanal, cujo avô abriu o Mevsim Balikcilik, a peixaria mais antiga da cidade. (Atualmente ela fica no térreo do Okyanus.) Há dias Sinop não via "hamsi" e a população já começava a sentir os efeitos da abstinência; Kanal estava esperando uma entrega de Zonguldak, outra cidade costeira. "Peixe é peixe, mas 'hamsi' é 'hamsi'", resumiu ele.

  • David Hagerman/The New York Times

    Hanim­eli Cafe em Inebo­lu oferece anchovas preparadas com farinha de milho

A cozinha do Okyanus, supervisionada pela mãe de Kanal, mostra sua reverência pelo peixe nas versões perfeitas de "hamsi izgara" (anchovas marinadas em cebolas e acompanhadas de salsa grelhadas); "hamsi tava" e, de vez em quando, "hamsi kofte". O "hamsi pilavi" assado de Kanal (filés de anchovas recheados de arroz temperado com salsa) era uma verdadeira obra-prima.

No meio do caminho para o meu próximo destino, Inebolu, parei em Gullusu Aile Canli Balik (na rodovia principal; 368-684-8046), onde Rahmi Pamuk apontou para um pesqueiro ancorado abaixo do restaurante. "Meu filho pega, a gente prepara", ele resumiu. "Não poderia ser mais fresco." Comi "tava" novamente no jantar, mas dessa vez preparado com o "hamsi" que tinha sido pego horas antes. Com tempero forte de limão, o sabor da salada verde apimentada "tere" casava perfeitamente com o peixe.

Cheguei a Inebolu, uma cidadezinha nas colinas cheia de casas de madeira, e encontrei "hamsi" em todo lugar: nas peixarias, nos carrinhos de madeira parados nas vielas, exibido em cafés e restaurantes... mas, no dia seguinte, no Ine Balik & Et (11 Haci Mehmet Aydin Caddesi; 90-366-811-4123), cujo salão principal no andar superior dava para a padaria, uma peixaria e duas barbearias, provei uma especialidade local chamada "pilaki" (que precisa ser pedida com uma hora de antecedência), preparada com "sarikanat", uma variedade de anchova bluefish. Assado numa forma de barro, o peixe era coberto com um molho grosso e amanteigado, cujo sabor lembrava o do escargot. Não via a hora de provar o prato – e o sanduíche de peixe grelhado e a sopa de peixe – feito com "hamsi", mas, novamente ele havia desaparecido.

Fiquei em Inebolu mais dois dias, torcendo para o "hamsi" aparecer. Na minha última manhã, visitei a feira que acontece todas as manhãs de sábado, uma orgia de pratos preparados e produtos frescos dos vilarejos vizinhos; depois fui tomar chá no Hanimeli Cafe (10 Ismetpasa Caddesi). No dia anterior, tinha contado da minha saga para Esen, a dona do café e excelente cozinheira.

"O 'hamsi' chegou", ela anunciou assim que eu entrei. Dez minutos depois, enquanto atacava mais uma montanha de anchovas crocantes e douradas, a tristeza foi tomando conta de mim, substituindo a satisfação – afinal, tinha acabado de descobrir que a fome de "hamsi" é aplacada, sim, mas nunca saciada.