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Terra de vulcões e rinhas de touros, Arequipa é uma das faces mais originais do Peru

Marcel Vincenti

Do UOL, em Arequipa

23/04/2012 07h07

O sol queima no céu sem nuvens e adensa a poeira que, rapidamente, se espalha no ar. A plateia está absorta: garrafas de cerveja morna na mão, chapéus de vaqueiro na cabeça e olhos fixos no centro do campo de futebol de Arequipa, no sul do Peru, onde enormes vultos se atracam em uma batalha feroz. A cada golpe contundente, um grito da multidão, um rugido dos oponentes, mais poeira ao vento. A luta é de peso-pesados: dois touros de aproximadamente 600 quilos que, colocados frente a frente no descampado, não tardam em trocar chifradas.

É começo de Semana Santa. Longe do estádio, uma procissão percorre o centro da cidade. Vestidas como penitentes, à la Ku Klux Klan, crianças carregam cruzes entre casarões do século 19, feitos com pedra vulcânica. A imagem de Jesus Cristo vai mais à frente, guiada por um carro de som. Um bêbado de traços indígenas, parado na calçada, a cara suja, observa, cambaleante, o desfile religioso. É olhado de esguelha pelos padres, que alçam aos céus compridos crucifixos de prata. 

Como é de costume, Arequipa está mobilizada em várias frentes. A poucas quadras dali, na Praça Maior, à medida que o dia cai, um grupo começa a acender velas na frente da catedral local. O ato é embalado pelos instrumentos e vozes de um grupo de “tuneros” - estudantes que, vestidos com capas negras e bombachas, se reúnem semanalmente para tocar música folclórica no centro da cidade.

A praça, toda cercada por enormes arcos de granito, deverá se apagar às 20h30 (conforme previsto pelo evento contra o aquecimento global “A Hora do Planeta”). Os músicos tocam alaúdes e violões, cantam com voz de barítono, as pessoas dançam, a contagem agressiva termina e...nada. A cidade continua acesa. Mas ninguém se importa: os “tuneros” seguem com suas canções bem-humoradas, que embalam a plateia e iluminam ainda mais o céu estrelado.

Mosteiros e terremotos

Arequipa é como a terra que a sustenta: imprevisível. Cercada por majestosos vulcões, é a segunda maior cidade do Peru, com quase um milhão de habitantes, e sofreu inúmeros terremotos nos últimos dois séculos (o último deles, devastador, em 2001). Mas nada que tenha abalado o peculiar e orgulhoso caráter da população nativa.

  • Marcel Vincenti/UOL

    Touros se enfrentam no meio de um campo de futebol de Arequipa, em um dos eventos mais tradicionais dessa região do Peru

Os arequipenhos se gabam de ter como conterrâneos alguns dos mais notórios peruanos (o escritor Mario Vargas Llosa e quase uma dezena de ex-presidentes do país estão entre eles) e se queixam por sua cidade não exercer tanta influência como Lima no cenário político nacional.

“Pequena pátria” é como geralmente se referem à sua terra, aos descrever as belezas locais. E os atrativos, de fato, são muitos: fundada pelos espanhóis em 1540, no lugar de um vilarejo inca, a cidade, situada na desértica região que forma o sul do Peru, logo se tornou um importante centro político da colônia. As casas começaram a ser erguidas no mais belo estilo colonial e o ar se santificou com a chegada de inúmeras ordens religiosas.

Há, hoje, em Arequipa, pelo menos cinco igrejas que fariam muitos párocos europeus corar de inveja. E seus conventos estão longe de serem claustros lúgubres e opressivos: o Mosteiro de Santa Catalina, por exemplo, fundado em 1579, e que ocupa uma área de 20 mil m², é como uma pequena vila do interior da Espanha cravada no meio da cidade: exibe pátios cercados por arcos coloridos, hortas, capelas adornadas com arte sacra e pitorescas casinhas onde viviam as monjas. Dos canteiros, as rosas saturam o ar com seu aroma doce.

Um clima de paz que só é quebrado quando a vista cruza os limites do mosteiro e se depara, repentinamente, com a silhueta do vulcão Misti, envolta em neblina, quase que surgindo das paredes do claustro.

  • Marcel Vincenti/UOL

    Fundado em 1579, o Mosteiro de Santa Catalina chegou a abrigar 450 freiras e é um dos mais belos conventos da América do Sul

O Misti é um dos três vulcões que compõem a paisagem de Arequipa. Sua forma cônica, com 5.820 metros de altura, parece pronta para explodir a qualquer momento. Apesar disso, escaladas no Misti e nos vulcões vizinhos Chachani (6.070 metros) e Pichu Pichu (5.650 metros) são atividade muito praticada na região. Assim como passeios a alguns dos cânions mais profundos do mundo, como os do vale do Colca e Cotahuasi, ambos à distância relativamente curta de Arequipa.  

Cidade fervorosa

"Tenho amigos que, quando vêm a Arequipa, me dizem que se sentem coléricos, com vontade de brigar", diz um estudante universitário da cidade. “Acho que é por causa dos vulcões que nos rodeiam. Em Arequipa as pessoas são intensas”.

Que o digam os amantes das pelejas: a briga dos touros (uma tradição legalizada e essencialmente arequipenha) termina quando um dos animais, como que sentindo que não pode bater seu oponente, foge do picadeiro. Há sangue escorrendo por seu dorso. A multidão aplaude com fervor e fica-se sabendo, pelo alto-falante, que alguém ganhou 700 soles (cerca de 450 reais) com o resultado. O touro vencedor, acompanhado por seu orgulhoso dono, é levado para atrás das arquibancadas e, ironia pura, passa ao lado de uma barraca onde uma senhora, em meio a uma nuvem de fumaça, assa "anticuchos" (coração de vaca, muito consumido no Peru).

  • Marcel Vincenti/UOL

    Músicos "tuneros", que seguem uma tradição surgida na Europa do século 13, tocam na frente da catedral de Arequipa

Já perto da Praça Maior, as pessoas continuam rezando. O cheiro de carne é substituído pelo odor do incensário que o padre balança incessantemente. A igreja de La Compañía (terminada no final do século 17, com fachada de estilo barroco mestiço) está iluminada e cheia de fiéis.

A procissão, seguida por cada vez mais pessoas, tem dificuldade em atravessar as estreitas vielas do centro histórico de Arequipa. Em seu percurso, a multidão passa ao lado do Museu da Universidad Católica de Santa María, onde está uma das habitantes mais famosas da cidade: a múmia indígena Juanita, morta provavelmente entre os séculos 15 e 16 e descoberta em 1995, no topo de um vulcão a 80 km de Arequipa.

Seu estado de conservação é perfeito, mas não tanto como sua representividade: com múmias, músicos e rituais de religião e sangue, Arequipa une eras, paisagens e culturas como poucos lugares na América do Sul. 

Dica de viagem

Arequipa ocupa posição estratégica na América do Sul: está praticamente no meio dos caminhos que conectam Peru, Bolívia e Chile. Para aqueles que estejam viajando - ou planejem viajar - pela região, fica a dica: não deixem de dar uma passada por essa fascinante cidade peruana.