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Em Potosi, na Bolívia, turista conhece o esplendor da colônia e o inferno das minas

MARCEL VINCENTI

Colaboração para o UOL Viagem, de Potosi

17/10/2011 08h02

A trajetória da cidade de Potosi, no sul da Bolívia, é, sem nenhum exagero, um conto de fadas que terminou em sangue. Urbe de história única no mundo, o lugar reúne, em sua acidentada paisagem, uma era de glórias distante e um presente de crueldade contínua.

O herói Dom Quixote de la Mancha não estava errado: exclamava “esto vale un Potosí!” quando queria dizer que algum objeto tinha um alto valor monetário. Mas isso foi no começo do século 17, quando Miguel de Cervantes terminou de escrever e publicou seu célebre livro.

Naquela época, se extraía de Potosi nada menos que a metade da prata comercializada na Terra (entre 1581 e 1600, auge da produção local, foram cerca de 3,5 mil toneladas de prata de alta qualidade) e, reza a lenda, até suas ruas estavam cobertas com o nobre metal. O Velho Continente, proprietário e consumidor de tal riqueza, exultava, e enviava àquelas áridas paragens do altiplano andino um grande contingente de pessoas em busca de fortuna ilimitada - e quase certa.

Fundada em 1545, logo após a descoberta de reservas argentíferas na montanha que os indígenas chamavam de Sumaj Orcko (Bela Montanha), Potosi abrigaria, por volta de 1580, mais de 120 mil almas. E a Bela Montanha, à sombra da qual crescia a nova metrópole, seria rebatizada Cerro Rico pelos europeus que a exploravam – e se transformaria, para os índios que a veneravam desde tempos remotos, em uma franquia do inferno na Terra.

Os espanhóis construíram um esplêndido casario colonial no centro da cidade e viram chegar a Potosi inúmeras ordens religiosas que, no afã se de associar ao novo eldorado das Américas, ergueriam no local conventos e igrejas tão esplêndidos como as matrizes europeias. Pouco importava o fato de Potosi quase não ter ar (está a quatro mil metros de altitude) e ser abatida constantemente por um clima agressivamente gélido. A urbe prosperou e, em 1640, chegou a ter 180 mil pessoas (à época, mais gente que em centros como Paris e Sevilha).

Hoje, são muitas as lembranças deste tempo de glória presentes nas ruas da cidade. Há desde o símbolo máximo da ganância potosina - a Casa da Moeda, onde eram cunhadas as moedas de prata que posteriormente seriam enviadas à Europa – até exemplos sublimes da arte mestiça que foi empregada na construção de muitas das igrejas locais. A fachada da igreja de San Lorenzo, por exemplo, mistura elementos cristãos e figuras indígenas em um intrincado painel de inspiração barroca. Já a igreja do Convento de São Francisco, fundado em 1547, é sustentada por colunas e abóbadas capazes de impressionar qualquer rato de Vaticano.

A figura de Jesus que guarda o altar deste templo é uma atração à parte: talhada em madeira, sua cor morena lembra à da população boliviana e seus cabelos são reais (os fieis dizem que eles ainda crescem). Do mirante do edifício, aberto ao público, os turistas podem ver o aspecto romântico-decadente de Potosi: vielas abertas entre casas com balcões de madeira trabalhada e pátios de belas colunas e fontes ressecadas. O céu, tão próximo, é, via de regra, de um azul intenso, e a montanha Cerro Rico, silenciosa à distância, e com sua imponente forma cônica, será sempre a última parada de um olhar contemplativo por essa antiga morada da ganância. 

  • Marcel Vincenti/UOL

    Em Potosi, ordens religiosas ergueram igrejas tão esplêndidas como as matrizes europeias

Beleza à mostra, dinamites à venda

Nos dias de hoje, porém, a beleza histórica de Potosi não é o que atrai os visitantes estrangeiros (e eles não são poucos) às áridas alturas bolivianas. Os turistas, na cidade, têm outro objetivo: conhecer o inferno. 

O Cerro Rico se tornou um destino obrigatório para muitos indígenas desde a descoberta das primeiras reservas de prata há 466 anos. Sob a Coroa Espanhola, eles eram enviados às minas sob o regime de "mitas", que os obrigava a trabalhar em condições sub-humanas e morrer jovens com doenças respiratórias ou sob desabamentos.   

O historiador uruguaio Eduardo Galeano calcula, em seu famoso livro “As Veias Abertas da América Latina”, que, entre os séculos 16 e 19, aproximadamente oito milhões de pessoas tenham morrido em decorrência da exploração do Cerro Rico. E documentos do Arquivo Histórico da Casa da Moeda mostram o que tamanho sacrifício rendeu para os cofres europeus: aproximadamente 31 mil toneladas de prata fina – quantidade que foi retirada da montanha entre 1545 e 1824, tempo em que a Espanha controlou a extração. O espantoso número corrobora a frase que os bolivianos sempre usam quando se referem a essa história: “seria possível construir uma ponte de prata entre Potosi e a Espanha com todo o metal que foi tirado do Cerro Rico”. Não deve ser exagero.

Mas o passado se estende ao presente: o Cerro Rico continua sendo um destino obrigatório para muitos indígenas bolivianos, que continuam trabalhando em condições sub-humanas e morrendo de silicose e sob escombros (só que agora, não é a Coroa que os obriga a tal labuta, mas a inexistência de qualquer trabalho rentável na região). E a incursão a uma das minas é, sem dúvida, o ponto alto - e polêmico - de qualquer visita a Potosi.

  • Marcel Vincenti/UOL

    Jovem carrega minério para fora do Cerro Rico; símbolo de Potosi é aberto aos turistas

Incursão às minas

O ritual, organizado por agências turísticas e hotéis locais, fascina e assusta: o primeiro passo é ir aos mercados aos pés do Cerro Rico, já na zona periférica de Potosi, e comprar alguns "presentes" para os mineiros: sacos cheios de folha de coca, Ceibo (uma bebida com 96% de grau alcoólico) e dinamite. Isso mesmo: dinamite. O explosivo é vendido livremente, por pouco mais de cinco reais, nas ruas da cidade. Adolescentes de 15 anos (muitos deles também trabalham nas minas) podem adquiri-lo sem nenhum empecilho.

O segundo passo é a vestimenta: o turista coloca calça de sarja, uma jaqueta encardida e um capacete equipado com lanterna, tal qual um mineiro (mais que fantasia, o kit garatirá a integridade física do visitante dentro da montanha). E, como terceiro passo, entra na mina.

O termo “inferno” não é exagero. O Cerro Rico é um formigueiro habitado por sombras que pouco parecem humanas. Aos locais de extração se chega por corredores estreitos, claustrofóbicos e escuros, nos quais as temperaturas mudam, abruptamente, de 10 para 40 °C - e vice-versa. O ar que se respira é visível: partículas de terra, impregnadas de sílica (o elemento que envenena os pulmões dos mineiros), flutuam na frente dos olhos, grudam no suor do rosto e incomodam o olfato com seu odor rançoso, um cheiro da mais vagabunda e suja das oficinas mecânicas.

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    Mineiro mostra dinamite adquirida livremente - e por R$ 5,00 - em uma loja de Potosi

Os mineiros (são aproximadamente 13 mil trabalhando no Cerro Rico, em esquema de cooperativa) picam as paredes, carregam enormes sacos com as pedras extraídas, sobem por escadas precárias, transportam material entre os diversos níveis da montanha e, lógico, explodem suas dinamites. Alguns, às vezes, trabalham em turnos de 24 horas. Seu único alimento é folha da coca que, armazenada nas bochechas por longo tempo, acabam com qualquer resquício de apetite.

Prata de boa qualidade já quase não existe nesses buracos: o que mais se consegue é chumbo e estanho - e prata de má qualidade - prontamente vendidos a uma das 33 refinadoras que operam em Potosi.

Nenhum deles consegue dizer exatamente quanto ganha (“Há meses em que tiro 10 mil bolivianos – 2,5 mil reais – há meses em que não ganho nada”, diz Carmelo Ticona, mineiro de 28 anos), mas todos têm certeza de uma coisa: irão falecer logo.

Segundo o médico Gualberto Astorga, do centro de pneumologia da Caixa Nacional de Saúde (hospital que cuida dos trabalhadores das minas), a expectativa de vida de um mineiro é de 45 anos. “As esposas, tão preparadas que estão, nem choram quando lhe damos a notícia da morte”, conta ele.

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    Mineiro trabalha sob calor e pó de sílica no Cerro Rico: expectativa de vida de 45 anos

Ticona, por sua vez, admite: “Sei que vou morrer em breve, mas é o destino do mineiro. Não temos indústrias em Potosi e é a única coisa que podemos fazer”.

Ao seu lado estão os seus dois irmãos, com 22 e 18 anos – ambos também mineiros. Atrás dele, a montanha que um dia enriqueceu a Europa e que hoje, no seu interior, guarda a estátua - de tamanho humano - de um diabo.

Chamada de “O Tio”, e dona de uma feição assustadora, ela é venerada fervorosamente pelos mineiros, que lhe presenteiam com folhas de coca, cigarro, álcool e sangue de lhama (extraído em festivais de sacrifício realizados anualmente). O objetivo desses homens não é pedir fortuna, mas rogar para que não tenham nenhum acidente dentro da mina.

O Cerro Rico já foi um relicário de riquezas minerais indescritíveis. Hoje, carente de sua prata, é o maior símbolo da miséria boliviana.