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No rio Lièvre, em Québec, canoagem segue a trilha dos mercadores de peles

ALEX HUTCHINSON

The New York Times Syndicate

16/10/2011 07h30

Nós tínhamos duas escolhas: parar e carregar nossas canoas e equipamento por uma trilha de 6,5 quilômetros paralela ao rio, ou remar para dentro de um desfiladeiro com suas 19 corredeiras e paredes quase verticais. Seja qual fosse, a decisão seria final.

Era nosso quarto dia no rio Lièvre em Québec, a cerca de 270 quilômetros ao norte de Ottawa, e a correnteza, no início gentil, estava ficando mais intensa a cada afluente pelo qual passávamos. A terra ao nosso redor, densamente coberta de pinheiros e pontilhada com um ocasional cedro ou bétula, se erguia de forma íngreme e rochosa em ambas as margens do rio à nossa frente. Do outro lado da curva vinha o estrondo abafado das águas furiosas.

Nosso dilema provavelmente foi enfrentado pelos mercadores de peles franco-canadenses que viajaram por esses rios por centenas de anos, desde o século 17. Pouco mudou ao longo das vias aquáticas que cortam grandes trechos do norte de Québec e Ontario, permitindo que canoístas criativos revivam as experiências desses viajantes, enfrentando as mesmas corredeiras em solidão semelhante.

Mas havia uma diferença chave: em vez da frágil casca de bétula, nossas canoas eram feitas de termoplástico revestido de vinil quase indestrutível. Encorajados, nós remamos na direção das águas turbulentas do desfiladeiro.

Eu tenho praticado canoagem durante grande parte da minha vida, mas apenas nos últimos anos é que comecei a pensar em viagens de canoa como jornadas pela história. Até então, minhas viagens – em lugares como o Parque Algonquin, a poucas horas ao norte de Toronto – invariavelmente envolviam uma rota circular por uma série de lagos tranquilos ligados por trilhas de transporte, visando terminar no ponto de partida. Mas em 2008, meu amigo Tim Falconer me convidou para ocupar uma vaga em sua viagem anual de canoa, acompanhado de dois amigos, Steve Watt e Mick Wilson, e me apresentou a um novo conceito de canoagem: a viagem por rio.

As diferenças entre canoagem em rios e lagos são mais profundas do que apenas a largura dos espaços aquáticos. Há uma lógica interna em uma viagem em rio, enraizada no desejo de se chegar do ponto A ao ponto B da mesma forma como faziam os povos indígenas, exploradores e mercadores de peles. Além disso, há corredeiras.

Nos últimos três anos, eu enfrentei os rios Dumoine, Noire e Lièvre, juntamente com Tim e seus amigos. Todos os três foram pequenas rotas de comércio de peles, fluindo para o sul cortando a paisagem acidentada de rochas e pinheiros do norte de Ottawa e desaguando no poderoso rio Ottawa, a superestrada continental dos séculos 17 e 18.

Imersos no rio

Viagens por rio exigem logística adicional: para nossa viagem no Lièvre em agosto do ano passado, nós combinamos com um dono de loja de equipamento em Ottawa para nos encontrar em nosso ponto de chegada, perto da cidade de Mont-St.-Michel, Québec, a três horas de carro ao norte da cidade. Ele transportou nós quatro (mais duas canoas) até nosso ponto de partida, mais de 70 quilômetros ao norte; nós deixamos a van no ponto de chegada para a viagem de volta a Ottawa.

Assim que finalmente entramos na água, nós remamos por oito quilômetros contra uma brisa mais forte para chegar a um ponto de acampamento de aparência agradável, em uma restinga margeada de árvores se projetando no rio. Enquanto Steve e eu armávamos as barracas, Mick começou a montar o equipamento de cozinha e Tim acendeu o fogo para deixar o carvão pronto para o ritual sagrado do passeio de canoa: o jantar com filé de peixe da primeira noite.

Enquanto preparávamos a refeição – filé, batata assada com manteiga de alho, salada César e um cabernet sauvignon, seguida de pequenos brownies– cada um de nós lentamente se desligava dos estresses do dia a dia nos quais estávamos imersos mesmo durante o caminho para cá (até que o sinal dos celulares finalmente sumiu). Nos cinco dias que se seguiram, nosso mundo seria a própria simplicidade, com apenas duas metas: chegar todo dia ao nosso destino sem nos afogarmos e comer bem.

  • Refeições à base de peixe são a pedida preferida das pessoas que exploram o rio Lièvre

O Lièvre, cujo nome vem da abundância de lebres locais, foi mencionado pela primeira vez nos diários de Pierre de Troyes, cavaleiro de Troyes. Em 1686, ele liderou uma expedição de 30 soldados franceses e 70 canadenses de Montréal, rio Ottawa acima, até a baía de Hudson, onde ele capturou três postos comerciais ingleses de peles.

Os diários oferecem uma imagem rica das condições de uma viagem de canoa no século 17. Um dia antes de chegarem à foz do Lièvre, os homens foram forçados a parar para vedar os furos nas canoas de casca de bétula. Enquanto estavam acampados, um homem queimou seriamente sua mão apagando o fogo de sua chaleira e outro perdeu um dedo com sua machadinha; outros cinco adoeceram com febre devido à água fria, após se molharem nas corredeiras.

“Eu fiz com que um canadense fosse amarrado a uma árvore para puni-lo por um comentário insolente que fez”, notou De Troyes no dia seguinte. “Vários tipos indisciplinados quase iniciaram um motim por causa disso, mas eu logo os conduzi de volta aos seus deveres.”

Não é preciso dizer, nós esperávamos por uma viagem mais tranquila, sem motim, pelo rio. Na manhã após o jantar com filé, nós carregamos as canoas e nos preparamos para enfrentar a primeira das 75 séries de corredeiras – variando de Classe 1 a Classe 4, segundo sua extensão e dificuldade– marcadas em nosso mapa ao longo da rota de 64 quilômetros. Os primeiros dias, passados nos trechos mais gentis do rio, nos deram a oportunidade de corrigirmos quaisquer problemas antes de enfrentarmos o temível desfiladeiro no quarto ou quinto dia.

Eu dividi uma canoa com Mick. O trabalho dele, na popa, era nos guiar de um lado para outro pela largura do rio em busca de canais desobstruídos. Meu trabalho, ajoelhado na frente da canoa e espiando para a água turva diretamente à nossa frente, era gritar como um louco – e, idealmente, tomar uma ação evasiva – se estivéssemos próximos de bater contra uma rocha submersa.

Nos dois dias seguintes, nós desviamos e serpenteamos rio abaixo, ocasionalmente ricocheteando em pedras e fazendo pausa para entrar na água e soltar a canoa sempre que encalhávamos. Entre as corredeiras, nós remávamos por trechos de águas calmas, que às vezes se abriam em pequenos lagos cheios de junco. Devido à abundância de corredeiras, este trecho do rio ainda é acessível apenas por canoa; as únicas pessoas encontradas durante a viagem foram dois pescadores de Québec.

  • Dupla de amigos se aventura encarando as fortes corredeiras do rio Liévre, em Québec

Quando chegamos ao desfiladeiro, no início do quarto dia, nossas canoas estavam arranhadas, mas intactas, e nossa confiança era grande. O nível baixo das águas após um verão seco significava que a maioria das corredeiras estava uma classe ou duas abaixo do indicado no mapa. A única parte difícil seria o quilômetro e meio final: virtualmente Classe 2 e Classe 3 sem intervalo, terminando em um trecho Classe 4 em curvas de 90 graus fechadas pelas paredes do desfiladeiro – em outras palavras, impossível de saber o que você encontraria depois. Talvez, eu imaginei, nós encostaríamos e manteríamos as canoas ao longo da margem – uma possibilidade, mas que seria lenta e trabalhosa.

Mas o urgente coloca o importante de lado. Enquanto navegávamos por uma sucessão aparentemente interminável de corredeiras Classe 2 e 3, eu fiquei tão concentrado em nos desviarmos das rochas 3 metros diante de nós que foi uma surpresa completa quando finalmente viramos à direita e vimos a Classe 4 – uma massa de água grande espumante que bloqueava nossa visão da queda além dela. O único espaço que podia ver estava entre duas rochas do tamanho de baleias na extrema direita.

“À direita!” eu gritei, e Mick e eu viramos freneticamente a canoa até ela ficar quase perpendicular em relação à corrente. Enquanto passávamos pelo espaço entre as rochas, eu vi que outro muro de pedras nos aguardava abaixo, a uma distância do comprimento da canoa.

“À esquerda!”

Nós tivemos tempo para apenas duas ou três remadas rápidas, arranhando desesperadamente as ondas aeradas. Nós batemos de lado em uma rocha imensa. Mas chegamos próximos o suficiente de outro espaço entre as rochas a ponto da corrente nos canalizar por ela e nos cuspir poucos metros abaixo. Nós conseguimos – a canoa estava até a metade de água e meu cabelo estava em pé, mas tinha acabado de superar minha primeira corredeira Classe 4.

Dever cumprido

Nós fomos para a margem do rio e nos viramos para assistir Tim e Steve, que passaram pela corredeira de modo decepcionantemente fácil, e acampamos em uma pequena baía depois da curva seguinte. Nós agora estávamos confortavelmente adiante do prazo, de modo que ganhamos um dia inteiro de descanso. Nós nadamos na baía, exploramos a mata ao redor e pescamos das rochas e das canoas, pegando alguns peixes (que Steve empanou, fritou em azeite de oliva e temperou com limão).

  • Após a adrenalina das corredeiras, o rio Lièvre oferece a tranquilidade da pesca

Sentados ao redor da fogueira naquela noite, nós começamos a nos parabenizar. Ainda nos restavam algumas horas remando na manhã seguinte, incluindo a passagem por várias corredeiras, mas estávamos prontos para considerar aquele o nosso melhor passeio: tempo excelente, natureza intocada, nenhuma carga trabalhosa, sem outras pessoas e inúmeras corredeiras desafiadoras o suficiente para empolgar, mas – pela primeira vez, não suficiente para nos derrubar da canoa.

Assim, dada nossa arrogância, o que se seguiu na manhã seguinte foi quase inevitável.

Tim e Steve foram na frente. Mick e eu assistimos enquanto eles remaram destemidamente por uma faixa curva de água espumante – e direto para um redemoinho de uma saliência Classe 4. A canoa ricocheteou em uma pedra submersa e virou, como uma ratoeira disparando. De Troyes testemunhou uma cena semelhante há mais de três séculos: “Eles mergulharam resolutamente no rio”, ele escreveu, “que eles descobriram estar na altura de suas axilas, e tiveram grande dificuldade em chegar à margem puxando suas canoas submersas. A rapidez da correnteza era assustadora”.

Quando alcançamos Tim e Steve, eles estavam molhados, com frio e trêmulos. Mas eles tiraram a água e devolveram suas coisas à canoa e continuamos remando. Quando tiramos nossas canoas da água pela última vez, posteriormente naquela manhã, eles pareciam ainda mais alegres do que na noite anterior, como se a peça que estava faltando na viagem finalmente tivesse sido encaixada em seu lugar.

Se você for

A temporada de canoagem nos rios no norte de Ottawa vai de maio a setembro. Para nossa viagem no Lièvre, nós conseguimos um transporte só de ida (1.130 dólares canadenses, aproximadamente o mesmo em dólares americanos) e uma canoa alugada (258 dólares por seis dias) na Trailhead (613-722-4229; trailhead.ca), em Ottawa.

Black Feather (888-849-7668; blackfeather.com) oferece viagens com guia no Dumoine, Noire e outros rios da região, a partir de 1.195 dólares por pessoa para uma viagem de cinco dias.