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Descubra segredos de Milão num roteiro de compras e cultura

GUY TREBAY

New York Times Syndicate

16/07/2011 08h09

Durante os primeiros dez anos de nosso relacionamento, Milão e eu estávamos constantemente em conflito. Da minha parte, a lista de queixas incluía o notório clima da cidade - alternadamente fervendo de calor ou frio como uma masmorra e, como grande parte da cidade é construída sobre canais cobertos, perenemente úmida; a escassez de atrações culturais contemporâneas; o fato de o lugar se tornar uma cidade fantasma na maioria das sextas-feiras, quando qualquer milanês que se preze (não existem outros tipos, na verdade) deixa a cidade para um retiro de fim de semana nas montanhas ou à beira-mar.


Em textos, eu lamentava a falta de ideias consistentes nas passarelas de uma cidade que se orgulha de ser a capital da moda. E, de vez em quando, eu reconheço, eu fui longe demais.

Certa vez ao criticar um show de uma dupla de estilistas que vinha do sul, mas que mora e expõe em Milão, eu escrevi que a mais recente coleção deles parecia dedicada a uma prostituta se preparando para fazer sua primeira comunhão, e a imprensa italiana adotou a piada.

  • Chris Warde-Jones/The New York Times

    O Spazio Rossana Orlandi faz pouco esforço para seduzir o consumidor médio, em Milão


Até hoje é difícil acreditar que um ciclo de notícias esteve tão fraco a ponto de uma piada sobre um desfile de moda pudesse chegar às manchetes, mas aquela chegou. Condenado em primeira página por afrontar a cultura italiana, eu fui repreendido nas páginas editoriais do 'Corriere della Sera', o principal jornal do país, gentilmente censurado em jantares milaneses, banido de algumas primeiras filas e assediado em busca de comentários por uma equipe de televisão italiana que me perseguiu até Paris.

A tempestade passou e, no final, Milão e eu nos entendemos. E isso é bom, já que eu odiaria permanecer alienado de uma cidade que eu aprendi a amar com o tempo.

Não é que Milão mudou. Ela continua sendo uma cidade vã, superficialmente tediosa e distante, um lugar em que os cidadãos, como certa vez disse um amigo americano que morou ali por anos, às vezes são tão distantes que fazem os parisienses parecerem membros da Welcome Wagon (uma empresa que promove recepções de boas-vindas). Mas, como acontece tantas vezes em relacionamentos em que o elo emocional se forma em torno do hábito, eu me apaixonei por Milão.

Demorou quatro visitas por ano durante uma década, mas eu desenvolvi um conhecimento afetuoso de uma cidade que, longe de ostentar seus muitos tesouros culturais, se faz intencionalmente difícil de conhecer. Você está ciente disso se já tentou adquirir ingressos para ver 'A Última Ceia' de Leonardo. Você pode sentir isso pelo olhar vazio com que é recebido quando você menciona para a população local os tesouros (um mal-humorado gondoleiro Francesco Guardi envolto na neblina de Veneza) do Museu Poldi Pezzoli, uma instituição maravilhosa que poucos milaneses que conheço já visitaram.

Você a conhece se tiver passado horas frustrantes tentando decifrar o código misterioso que rege o horário comercial das empresas anacrônicas que - depois de conhecê-las - fazem de Milão um paraíso das compras. Apesar de todos os visitantes na cidade provavelmente conhecerem seu Triângulo Dourado (mais como um quadrado de ruas cravejado de lojas de cada marca de luxo que você pode lembrar), poucos percebem que os preços do país de origem são apenas metade do motivo para valer a pena comprar na Prada, Jil Sander ou na Tod's em Milão. Leva tempo para discernir as formas variadas como os compradores locais dessas marcas selecionam e escolhem produtos em cores, estilos e materiais raramente vistos em seus filiais em qualquer outro lugar.

Paciência também é necessária para formar uma caderneta de endereços de lojas especializadas que estão desaparecendo rapidamente na maioria dos lugares, empresas como a venerável papelaria F. Pettinaroli.

Pettinaroli fornece papel para escrever para os nobres, grandes e os novos ricos milaneses há mais de um século (ela foi fundada há 130 anos, em 1881); é o lugar onde suas estampas provavelmente serão preservadas caso seu nome por acaso seja Visconti ou Prada.

Dos dois endereços da papelaria e tipografia, eu prefiro o localizado em uma rua tranquila, atrás da Galleria Vittorio Emanuele, com suas janelas repletas de cenas em litogravura e papel para escrever de bom gosto, com seu interior revestido em painéis de madeira e cheio de artigos de mesa em couro e selos de lacre que parecem adereços de 'Um Sonho de Amor'.

Como Pettinaroli é irritantemente observador da sesta que a maioria das empresas comerciais em Milão abandonou, muitas vezes me senti frustrado ao chegar assim que a loja fecha para o almoço. Eu persisto, no entanto, porque a papelaria está entre os últimos lugares onde encontrar um papel para escrever peso médio, de um azul claro particular, que já foi comum e é agora escasso, e porque a clareza nítida da estampa continua inigualável.

A tipografia também estoca cartões em branco duros com motivos obscuros em alto relevo, retirados da naftalina de vez em quando e então devolvidos caprichosamente à obscuridade. Um trevo de quatro folhas dourado que apareceu em uma época tinha desaparecido na próxima; até hoje sou assombrado pelo erro que cometi de não ter comprado todo o estoque.

Para os milaneses, materialismo exige não pedir desculpas. Eles adoram coisas belas e luxuosas, e é por essa razão, talvez, que a moda italiana mantém a sua posição global. Sim, o enaltecido rótulo 'Made in Italy' frequentemente significa apenas que a pessoa que o colocou o fez dentro das fronteiras da Itália, já que uma enorme quantidade de produtos de design italiano é feita no Leste Europeu atualmente.

  • Chris Warde-Jones/The New York Times

    Luvas em exposição na Sermoneta, em Milão


Mas para luvas, roupas de lã, malas e alguns dos dispositivos mecânicos, você quer o produto feito em casa. E o que você não consegue encontrar novo em lugares como a Sermoneta - uma fabricante de luvas cuja pequena loja na Via della Spiga vende desde modelos padrão, como luva sem forro de couro de bezerro costurada à mão, até curiosidades feitas de couro de pônei e couro de caititu (porco-do-mato) - você pode encontrar em lugares tipo caverna do Aladdin como Vintage Delirium de Franco Jacassi. Como muitos das lojas seletas de Milão, a Vintage Delirium mal aparece na rua. Uma janela indistinta em uma parede exterior de um prédio de apartamentos burguês mal sugere o que pode ser encontrado dentro do pátio fechado, onde Jacassi mantém sua loja. É raro existir algum estilista em Milão que, em algum momento, não tenha revirado o estoque de Jacassi de roupas usadas em busca de 'inspiração'. Os medíocres, parafraseando uma observação normalmente creditada a Picasso, apenas copiam o que compram. Os melhores reviram o estoque de Jacassi de roupas de lã pura, trajes de noite dos anos 30 e gravatas de seda napolitanas dos anos 60 e roubam linha por linha.

Como o Vintage Delirium de Franco Jacassi, o Spazio Rossana Orlandi faz pouco esforço para seduzir o consumidor médio, e para mim essa relutância passou a parecer um traço verdadeiramente milanês. Seria pouco dizer que encontrar este templo do design contemporâneo é um desafio. Instalado em uma antiga fábrica de gravatas em uma rua residencial tranquila no bairro Magenta, o Spazio Rossana Orlandi fica escondido no interior de um pátio atrás de maciças portas da garagem. Você precisa saber que está lá ou provavelmente nunca irá encontrá-la. Uma vez lá dentro, você vai ter dificuldade para sair. Com seus óculos de coruja imensos e o carro miniatura de palhaço que são suas marcas registradas, Orlandi é muitas vezes vista passeando pela cidade - uma decana de aparência improvável da cena de design sempre próspera de Milão. Mas os conhecedores sabem há muito tempo que seu olho para novos talentos costuma ser infalível. Foi no Spazio Rossana Orlandi, por exemplo, em 2002, que conheci as criações fantásticas de sucata de madeira do designer holandês Piet Hein Eek. Até hoje, a loja é um dos poucos lugares onde elas podem ser compradas.

Em Milão, como se aprende, alguns segredos são bem guardados (a loja de descontos da 10 Corso Como, o paraíso multimarcas de moda da varejista Carla Sozzani, abre apenas alguns dias por semana e é quase perversamente difícil de localizar) e alguns estão escondidos à plena vista.

Quase todo viajante que passa pelo centro da cidade está fadado a parar hipnotizado pelas vitrines da G. Lorenzi, uma loja de utensílios e cutelaria que ocupa a melhor esquina de toda a Via Montenapoleone.

A vitrine que muda sempre da Lorenzi, com itens de prata para bar, facas de caça e de jogos de manicure tão extensos que você poderia usá-los para remover um apêndice, tem um efeito hipnótico e não apenas os fãs desses produtos.

Mas é preciso tempo e dedicação para ver os inúmeros pegadores de salada de chifre de búfalo entalhados à mão, canivetes com acabamento em chifre de veado ou borrifadores de cristal com bombas à moda antiga, para encontrar os tesouros singulares feitos ali. Há coisas na Lorenzi - um saca-rolha forjado artesanalmente em cromo ou latão, por exemplo - tão requintadas e funcionais que servem como exemplos clássicos de design utilitário anônimo.

Eu compro um desses toda vez que eu vou para casa para levar a um amigo, e enquanto ainda estou em Milão eu uso para abrir o vinho eu compro na Peck, um templo gastronômico famoso e de propriedade familiar que faz com que as lojas de alimentos da maioria das outras cidades metropolitanas pareça pálida e mesquinha. Na Peck eu também compro um pedaço ou dois de queijo parmesão, selado a vácuo para exportação e vendido a preços altamente competitivos, saladas de frutos do mar e pão local para comer no meu quarto de hotel, o encantadoramente impassível Hotel Cavour de propriedade familiar.

  • Dave Yoder/ The New York Times

    Via della Spiga, uma das ruas mais famosas para quem quer fazer compras em lojas de grifes em Milão


Apesar de ter me hospedado lá por tantos anos a ponto de conhecer a maioria dos funcionários pelo nome, as visitas repetidas nunca produziram privilégios especiais. Essa também é uma característica de uma cidade cujo retraimento a distingue.

No Cavour há arte de verdade nas paredes, luminárias dos anos 60 nas escadarias, espelhos gravados com vistas estilizadas das principais praças da cidade em cada saída de elevador. Situado no coração da cidade, o hotel fica a poucos minutos a pé de um arco da era romana, que salta sobre a Via Manzoni e se integra a um complexo que inclui a única filial da (livraria) Feltrinelli Librerie com um grande estoque de livros em inglês.

Foi aqui que eu conheci as obras traduzidas do ácido humorista Aldo Busi, cujo 'Vida Padrão de um Vendedor Provisório de Collant' lamentavelmente parece pouco conhecido no mundo de língua inglesa.

O Cavour fica a apenas uma curta caminhada da Igreja de São Marcos, um complexo barroco austero em cujo mosteiro Mozart se hospedou por três meses no inverno de 1770, enquanto cobrava comissões dos nobres locais.

A caminho de São Marcos para acender uma vela votiva, eu costumava parar em uma loja onde em dez anos eu raramente encontrei outro cliente. Por que era assim eu não sei dizer, já que a AD56 não apenas não é um segredo, mas o lugar onde Lapo Elkann, o herdeiro da Fiat e obcecado por estilo, encomenda suas camisas sob medida. Como seu falecido avô, Gianni Agnelli, as encomendas de Elkann são altamente específicas. Também como seu avô, Elkann tem um apreço refinado por valor. Ele sabe reconhecer um bom negócio. A partir de US$ 150, as camisas com botões sob medida que eu compro lá são resistentes, muito bem feitas e, no final, não parecem nada especial. Elas são sim bonitas, sem ostentação e finas, da mesma forma que me foram necessários todos esses anos para entender como elas definem o que há de melhor no estilo milanês.