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De reduto de fantasmas a depósito de obras de arte, casas-museus são atração em Londres

ANDREW FERREN

New York Times Syndicate

26/03/2011 09h15

Enquanto os últimos reflexos de lavanda desapareciam do céu de outono, um grupo de pessoas permanecia por um momento sob um tremeluzente lampião de gás no limiar de uma casa da Londres do século 18. Se não fosse pelos carros na rua, poderia ser uma cena de um século atrás.


Mas como logo descobri, o verdadeiro salto para trás no tempo não acontece até você passar pela porta da Casa Dennis Severs (18 Folgate Street; dennissevershouse.co.uk). Severs (1948-1999) foi um artista cuja obra-prima foi seu próprio lar, uma casa georgiana de 1724, próxima do mercado Spitalfields do Leste de Londres, outrora o principal centro têxtil da cidade. Aqui Severs - um americano expatriado que virou um anglófilo radical - viveu como teria vivido nos tempos de George 3º, com lareiras para aquecimento e velas para iluminação, em um ambiente de época repleto de antiguidades, com curadoria cuidadosa, que no final ele decidiu compartilhar com o público.

Em vez de congelar a decoração em um determinado momento histórico, Severs mostrou como uma casa evoluiria ao longo de sucessivas gerações nas mãos de uma única família - a de um Isaac Jervis, um fictício tecelão de seda protestante, do tipo que antes habitava Spitalfields. Ao longo dos altos e baixos da fortuna da família, a sala poderia sofrer uma renovação vitoriana, ou o quarto surrado do sótão poderia ser alugado para hóspedes. Intensificando a ambiência, os murmúrios (gravados) do fantasma da família podem ser ouvidos enquanto os visitantes caminham pelos cinco andares da casa. A visita é especialmente evocativa no inverno, quando as visitas à luz de velas nas noites de segunda-feira ficam esgotadas, e os aromas de vinho quente e biscoitos condimentados aumentam ainda mais a atmosfera.

Essas criações - os caprichos e domínios privados dos estetas inspirados, colocados em exposição pública - são uma espécie de fetiche em Londres. De fato, casas-museu estão para Londres como postes de luz estão para outras cidades, o que significa dizer por toda parte. Talvez em nenhuma outra cultura o interior doméstico serviu como uma tela para a expressão pessoal. Os proprietários e seus arquitetos e decoradores têm sido encorajados a criar ambientes fabulosos ao longo dos últimos séculos.

Independente dos visitantes procurá-las ou simplesmente se depararem com elas, vale a pena dedicar algum tempo para entrar dentro destes encantadores incubadores de idiossincrasia.

De que outro modo alguém aprenderia a respeito de Mah-Jongg, o lêmure de cauda anelada que, nos anos 30 e 40, tinha rédea livre no Palácio Eltham, a antiga residência do rei Henrique 8º (para não mencionar os reis Henrique 4º e Henrique 2º) perto de Greenwich (Court Yard, Eltham; elthampalace.org.uk). Mah-Jongg, cujo quarto no segundo andar em Eltham foi decorado com cenas pintadas de florestas de bambu, era o amado animal de estimação de Stephen Courtauld, um herdeiro de uma fortuna têxtil britânica, e sua esposa de origem italiana, Virginia. Eles adquiriram a propriedade - notável por seu impressionante Grande Salão dos anos 1470 - em 1933 e contrataram os arquitetos Seely e Paget para transformarem a propriedade em uma casa moderna e adequada para suas necessidades consideráveis de entretenimento.

Colaborando com várias empresas de design, os arquitetos entregaram uma combinação elegante de cores que refletia os gostos predominantes da época. O tom é brilhantemente estabelecido no hall de entrada em estilo art déco sueco, projetado por Rolf Engstromer e contendo um domo de vidro e concreto deslumbrante. A sala revestida em painéis de castanheiro australiano, com cenas em marchetaria de Veneza e Estocolmo (com o iate dos Courtauld atracado no porto) é o máximo. Por toda parte Eltham foi dotado de “mod cons” (como eram conhecidas as conveniências modernas), como o sistema de telefone interno e um relógio ligado diretamente ao observatório de Greenwich. Pegue um lugar no quarto veneziano, com painéis de nogueira com inserções espelhadas, e assista aos filmes caseiros dos Courtauld, de festas em casa e viagens ao redor do mundo em seu iate. Mah-Jongg parece nunca estar longe da ação.

Mod cons ficam em segundo plano diante da atração do Orient at the Leighton House Museum (12 Holland Park Road; www.rbkc.gov.uk/subsites/museums.aspx). Frederic, lorde Leighton (1830-1896), foi um dos principais artistas vitorianos, conhecido por suas pinturas de belezas lânguidas como “June Flamejante”. Sua casa e estúdio às margens do Holland Park, em Kensington, é uma das residências do século 19 mais notáveis da cidade e um resumo completo do gosto orientalista do período. Um cenário freqüente de filmes (como “Asas do Amor”) e sessões de fotos, o Salão Árabe de Leighton, exibindo sua coleção de mais de mil azulejos islâmicos, é um dos espaços mais singulares em toda Londres. Os azulejos azul-pavão que ornamentam grande parte das demais salas públicas são de autoria de William De Morgan e unificam o espaço com um ar de opulência.

Iniciado em 1864 e ampliado nas décadas seguintes, o lugar inteiro brilha de novo desde que a casa foi reaberta em abril, após uma reforma exaustiva visando torná-la mais fiel à sua aparência na época de Leighton. Em exposição por toda parte estão muitas das obras do próprio Leighton, assim como as de seus contemporâneos vitorianos, como John Everett Millais, G.F. Watts e Lawrence Alma-Tadema. Claramente concebida para ser a melhor propaganda de Leighton como formador de opinião, a casa permitiu ao artista entreter de modo abundante e frequente. Apesar de os convidados nunca ficarem confortáveis demais, já que a casa tem apenas um quarto - o do próprio Leighton.

Cercada pelo trânsito intenso da esquina do Hyde Park, a Casa Apsley, também conhecida como Museu Wellington (Apsley House, 149 Piccadilly, 44-207 - 499-5676), pode escapar da atenção das pessoas que transitam entre o Palácio de Buckingham e a Harrod’s, mas vale a pena uma parada - mesmo que só para ver “Marte, o Pacificador”, a colossal estátua de mármore de Napoleão de Canova, no hall da escada. No guia de áudio, o atual duque de Wellington, que ainda mora parte do tempo no andar de cima, lembra de como ele tinha que tomar cuidado para não derrubar a estatueta de bronze da Vitória da mão de Napoleão, enquanto ele escorregava pelo corrimão na sua infância.

Com Napoleão derrotado por Wellington na Guerra Peninsular e finalmente em Waterloo, ele se tornou o maior Membro da Ordem Real Vitoriana militar do Reino Unido de todos os tempos. Títulos (como o de duque), propriedades (como esta) e joias em abundância foram derramados sobre ele, como um tributo a um imperador romano. Em sinal de gratidão por remover o irmão de Napoleão de seu trono, o rei espanhol Fernando 7º deixou que ele ficasse com obras da coleção real, como “Vendedor de Água de Sevilha” de Velázquez, que agora ocupa orgulhosamente um espaço em uma galeria no andar de cima. O duque também recebeu jogos de porcelana e faqueiros de prata dos reis da Europa. Ele os utilizava nos banquetes anuais em Waterloo e eles agora são exibidos no piso térreo. O conjunto de salas públicas no andar de cima serve como o pano de fundo para a incrível coleção de pinturas de Wellington. Aparentemente, o herói militar enfrentou tanto seus decoradores quanto tiranos franceses, insistindo em cortinas amarelas de seda no salão de baile, embora elas mais ou menos anulem os efeitos da douração cara das molduras.

  • Andrew Testa/The New York Times

    Fachada do Palácio Eltham, habitado pelo rei Henrique 8º (para não mencionar os reis Henrique 4º e Henrique 2º), perto de Greenwich


Mas talvez nenhuma casa-museu de Londres tenha fãs mais devotos do que o Museu de Sir John Soane (13 Lincoln’s Inn Fields; soane.org). Soane (1753-1837) foi um dos maiores arquitetos da Inglaterra, e passou os últimos 20 anos de sua vida ampliando sua casa em Lincoln’s Inn Fields com a compra de duas casas vizinhas. Ele a abriu para o público antes de sua morte e conseguiu uma lei do Parlamento para garantir que seria “mantida o mais próximo possível do estado em que eu a deixarei”. Atualmente, um projeto de seis milhões de libras está em execução para expor ao público as salas que serviam como escritórios desde a abertura da casa-museu em 1837.

O Museu Soane é emblemático de uma certa marca de britanidade - sutil, altamente organizada e totalmente encantadora. Os corredores, escadas, até mesmo o camarim de Soane, são repletos de esculturas e relíquias arquitetônicas, e sua biblioteca conta com mais de dez mil volumes. Soane adicionou cúpulas, clerestórios, claraboias e espelhos engenhosamente colocados, para sempre que possível trazer a luz natural para todos os cantos da casa - até mesmo ao porão.

Também não deve ser perdida a famosa série de pinturas de Hogarth retratando “O Progresso de Rake”, expostas nas paredes da galeria. As pinturas de Hogarth contam a história de um londrino fictício, da mesma forma como Severs inventou o tecelão de seda Jervis. Aqui temos Tom Rakewell, cujos hábitos perdulários o levam à penúria e à loucura. Há uma ironia em encontrar essas imagens moralistas, de um homem que perdeu tudo, penduradas no lar de um homem que triplicou o tamanho de sua casa para acompanhar o ritmo do crescimento de suas prezadas coleções.