UOL Viagem

27/02/2010 - 09h13

Desvendando a adorável Parma pelos olhos do escritor Stendhal

ADAM BEGLEY
New York Times Syndicate
De um ponto de vista prático, "A Cartuxa de Parma" é um péssimo guia. Um fã ardoroso de tudo o que é italiano, e um brilhante e impressionista escritor de viagem, Stendhal poderia ter legado às eras um retrato em prosa inesquecível de Parma, a pequena, sonolenta e provinciana cidade do norte da Itália onde grande parte da ação de seu grande romance se passa.
  • Dave Yoder/The New York Times

    Fila de árvores no Parco Ducale, em Parma


Mas em vez disso, ele inventou; sua Parma é imaginária. Ele nunca menciona o monumento imperdível, o Batistério de Parma octogonal, com seis andares, de mármore de Verona rosa e creme, construído no início do século 13, um dos prédios medievais mais elegantes do mundo. Em seu lugar, por assim dizer, ele ergue uma imensa torre sombria, com 55 metros de altura, avultando sobre a cidade, uma prisão onde nosso herói, Fabrice del Dongo, no final é encarcerado, e de onde ele realiza uma fuga ousada.

No que se refere aos outros itens pelos quais Parma é famosa - o presunto Parma e o queijo parmesão - Stendhal é igualmente perverso. Seu romance de 500 páginas é quase totalmente desprovido de comida; em um conto pós-napoleônico de intriga política e romance passional, não há banquetes, não há jantares - nenhuma refeição, na verdade.

Nas raras ocasiões em que comida aparece, a pergunta é se está ou não envenenada (Fabrice tem uma coleção de inimigos homicidas). Isso é profundamente injusto: a certeza de que alguém sempre comerá bem é um dos grandes confortos de Parma, que fica no rico Vale do Pó e poderia reivindicar o título de capital gastronômica da Itália (os moradores de Bolonha poderiam discordar).

Não importa - se há um livro que você deve levar com você em uma visita a esta cidade (o que qualquer um que ame a Itália, arte e comida vai querer fazer), é "A Cartuxa de Parma", a obra-prima de Stendhal, menos conhecida que "O Vermelho e o Negro", só que bem mais impressionante.

Sem nunca descrever Parma - não os palácios majestosos, não as praças espaçosas, nem mesmo a impecável Catedral - o romance evoca o lugar com exatidão, oferecendo ao turista um vislumbre de sua alma secreta.

  • Dave Yoder/The New York Times

    Arcos do Palazzo della Pilotta, em Parma

O fato de Stendhal (seu nome verdadeiro era Marie-Henri Beyle) nos fazer sentir Parma, sem nunca fazer pausa para uma única passagem descritiva, é um feito literário que revela uma verdade curiosa sobre o realismo e o poder da sugestão. Mostre-nos o efeito que um lugar tem sobre aqueles que passaram algum tempo lá e não há necessidade de fornecer detalhes visuais tijolo por tijolo.

O mesmo vale para os personagens em um livro: mostre-nos como os outros reagem a eles, e nós sentimos que os conhecemos, que os reconheceríamos na rua. Considere, por exemplo, o herói de Stendhal, um jovem idealista que sobrevive a sua decisão impetuosa de partir aos 16 anos para lutar por Napoleão, e cuja carreira subsequente se torna assunto de praticamente todo mundo no romance. Apesar de você poder não perceber na primeira leitura, Fabrice nunca é descrito fisicamente; nos é informado apenas que ele é "um garoto de boa aparência", altamente atraente para as mulheres. Nossa melhor pista sobre como Stendhal o vê é em um comentário de um personagem menor, que Fabrice tem um "semblante de Correggio".

Correggio é tanto o pintor mais famoso de Parma quanto o artista favorito de Stendhal. Um gênio da Renascença, um mestre da cor suave, da iluminação quente e do movimento vívido, Correggio decorou o domo da Catedral de Parma com sua vertiginosa "Assunção" (a Virgem Maria em um redemoinho de figuras, ascendendo ao brilho amanteigado do céu no topo do domo), uma extravagância ilusionista altamente influente.

Esse afresco e dois outros (a encantadora, alegremente pagã, cobertura infestada de nus na Camera di San Paolo, e o majestoso "Visões de São João" no domo de San Giovanni Evangelista) são por si só uma desculpa excelente para visitar Parma.

O toque mais característico do artista é um leve borrão, como se a imagem estivesse ligeiramente fora de foco. Stendhal, que escreveu uma história da pintura italiana, argumentava que "a arte (de Correggio) era pintar até mesmo as figuras em primeiro plano como se estivessem longe".

Essa descrição paradoxal indica o próprio método de Stendhal: ele prefere se desviar dos detalhes, preferindo um tipo de indistinção figurativa que convida a imaginação do leitor a preencher as lacunas, a participar do empreendimento criativo.

Se você está se perguntando o que isso tem a ver com Parma, uma visita à Piazza del Duomo deve ajudar a explicar. A primeira coisa que se nota, se você estiver visitando fora da alta temporada (aproximadamente de outubro a maio), é a ausência quase total de turistas em uma praça de rara beleza e antiguidade, e uma ausência correspondente de empreendimentos comerciais associados ao turismo.

Não há cafés a vista, não há quiosques de souvenires, nem o amontoado de placas oferecendo direções, datas ou lições de importância histórica. É um espaço público limpo e amplo, que pode ser percorrido a pé e de bicicleta (os carros estão proibidos de transitar no centro histórico). Os moradores de aparência próspera da cidade prestam tanta atenção aos monumentos gloriosos ao redor deles quanto você prestaria a um posto do correio em sua cidade.

  • Dave Yoder/The New York Times

    Domo da Catedral de Parma com a vertiginosa "Assunção" de Correggio

O olhar do visitante é naturalmente atraído para o Batistério - especialmente quando o sol está esquentando o mármore, provocando um tom de salmão; para a torre do sino de tijolos vermelhos, se estendendo ao céu; e para a fachada sem adornos da Catedral, tão sóbria e simétrica que parece até presunçosa, desfrutando de sua própria harmonia. Bicicletas são apoiadas sem cerimônia ao lado da porta aberta da Catedral, contra o mármore, um toque caseiro impensável em Florença, digamos, ou em Veneza. Diante da Catedral e do campanário, na esquina oposta ao Batistério, fica o austero Palazzo Vescovile, o palácio do bispo, uma presença forte definida pelas fileiras de robustos arcos romanos, que guardam as estruturas mais delicadas por trás. A piazza é agradável, calma, segura - mas de alguma forma vazia, inescrutável, como se Parma, de forma firme mas, educada, se recusasse a revelar qualquer coisa a mais do que sua superfície simpática.

O restante da cidade é menos bela, mas igualmente distante, coberta de prédios modernos feios (muitos deles um legado do bombardeio dos Aliados na Segunda Guerra Mundial). Por toda parte Parma exibe seu ritmo provincial relaxado e prosperidade fácil; apesar de perfeitamente amistosa, ela parece indiferente à noção de turismo. A Piazza Garibaldi, a grande praça no centro, é o que mais se aproxima de um lugar movimentado, com um fluxo animado de pedestres e ciclistas, além de um carro ocasional. A praça conta com um bom número de cafés e restaurantes, cada um com um terraço generoso coberto por guarda-sóis.

Grande parte dos ciclistas parece seguir para o sul da praça, ao funil da Strada Farini, uma rua atraente margeada por bares e restaurantes informais, alguns deles tocando música pop italiana no agradável ar de início de noite. Aqui o lento caminhar se mistura ao trânsito de volta para casa dos profissionais chiques de bicicleta, e por cerca de uma hora parece possível, enquanto você fica sentado à uma mesa de calçada bebendo prosecco, sentir o pulso de Parma. Mas de novo, tudo o que é possível dizer é que o paciente tem saúde -até mesmo está satisfeito consigo mesmo - ao cuidar alegremente de sua rotina.

E qual é o efeito de Parma sobre os personagens no romance de Stendhal? O veredicto é quase unânime, eu temo: repetidas vezes, eles a pronunciam maçante - eles são incomodados por "aquele adversário implacável das pequenas cidades e pequenos tribunais, o tédio". A Parma de Stendhal é governada por um tirano mesquinho (Ranuce-Erneste 4º), e seu primeiro-ministro inteligente e cheio de recursos, o conde Mosca, que é o amante da tia Gina de Fabrice, a adorável duquesa de Senseverina. Todos eles, em um ponto ou outro, confessam estar entediados com Parma.

Como Fabrice, a brilhante duquesa é fatalmente atraente ao sexo oposto, e os dois são no final envolvidos em um nó de intriga política e sexual. O emaranhado se agrava com a paixão da tia pelo seu sobrinho, cuja fortuna é sua preocupação obsessiva (o falecido Harry Levin, um eminente professor de Harvard de literatura comparada que considerava "A Cartuxa de Parma" como sendo "talvez o romance mais civilizado já escrito", apontou com uma sagacidade digna do próprio humor seco de Stendhal, que o relacionamento de Fabrice com sua tia "é uma mistura delicada de nepotista e erótico"). Todas suas tramas, e o drama que provocam, é um alívio para o que seria, caso contrário, um tédio geral. A torre que se avulta sobre o principado de Parma nos recorda que a triste monotonia da vida provincial é em si uma espécie de prisão.

Em 1816, mais de 20 anos antes de escrever seu romance, Stendhal fez uma anotação em seu diário de viagem, desdenhando o lugar: "Os sublimes afrescos de Correggio me fizeram parar em Parma, fora isso uma cidade bem 'chata'". A verdade literal desse último comentário é inegável (apesar de haver montanhas visíveis 16 quilômetros ao sul e os Alpes estarem a cerca de 100 quilômetros ao norte, Parma em si é plana como uma panqueca), mas a implicação de que a cidade é enfadonha precisa ser qualificada: eu não consigo imaginar como um turista, permanecendo apenas poucos dias, sofreria de tédio.

Além das maravilhas na Piazza del Duomo e arredores, há uma esplêndida igreja renascentista, a Madonna della Steccata, com afrescos do maneirista Parmigianino (a quem Stendhal chama acertadamente de "o maior pintor da região fora o divino Correggio"); meia dúzia de igrejas menores; um mosteiro beneditino com claustros bem distribuídos; um museu de arte de primeira qualidade; dois parques agradáveis, um contendo uma cidadela, o outro com um palácio ducal; um bom número de ruas pitorescas e asseadas; e uma abundância de restaurantes muito bons.

Todavia, no final haverá a necessidade de escapar. Stendhal propõe duas alternativas: Milão e o Lago de Como - a grande cidade ousada e a sublime paisagem natural - cada um fornecendo prazeres que Parma não pode oferecer.

Fabrice e Gina cresceram ambos no castelo del Dongo, às margens do Lago de Como, e periodicamente ao longo do romance retornam ao lago para se recuperarem. Stendhal dá a Gina um solilóquio romântico extático sobre os "aspectos sublimes e encantadores" desta localização charmosa, que ele nos assegura ser igual em todos os aspectos à Baía de Nápoles: "Tudo é nobre e afável", ela diz para si mesma, "tudo fala de amor, nada lembra os defeitos da civilização. (...) Além dessas colinas, cujos cumes oferecem vislumbres de eremitérios nos quais alguém ansiaria em se refugiar, um após o outro, a visão estupefata percebe os picos alpinos, sempre cobertos de neve, e sua austeridade faz recordar as misérias da vida, e quanto delas é necessário para as alegrias do presente de alguém. A imaginação é agitada pelo som distante do sino em alguma pequena aldeia. Esses sons, carregados pelas ondas que os adoçam... parecem dizer ao homem: a vida é fugaz, não seja tão duro com a alegria que se oferece a você, apresse-se em desfrutá-la!"

Eu lamento informar que apesar da beleza natural de Como permanecer mais ou menos intacta, os defeitos da civilização - na forma de uma indústria do turismo voraz que atende aos conhecedores endinheirados do cenário pitoresco - chegaram até ela. Logo, eu me apressei a desfrutar da alegria disponível cerca de 80 quilômetros ao sul, em Milão, que, se você fosse Stendhal, significaria ir à ópera.

"Eu cheguei às sete da noite, atormentado pela fadiga, e corri ao La Scala" - é como Stendhal, em seu diário de viagem, nos introduz a Milão, e à casa de ópera que ele considerava a principal do mundo. La Scala, ele nos diz, é o salão de Milão: "a única sociedade se encontra ali". Inevitavelmente, é no La Scala que ele escolhe reunir seus dois personagens mais memoráveis: em um camarote na ópera, o conde Mosca encontra Gina e se apaixona. Em outras palavras, La Scala é para onde o homem mais inteligente de Parma precisa ir para encontrar a mulher cativante destinada a se tornar o principal ornamento da sociedade de Parma.

Uma apresentação no La Scala, ainda um evento social cintilante repleto de milaneses elegantes, realmente faz Parma parecer limitada. Mas se há uma lição em "A Cartuxa de Parma", ela não é muito diferente daquela que Gina aprende com Como - que a vida é fugaz e não devemos ser duros com a felicidade que ela oferece. Fabrice encontra alegria na prisão, no topo daquela torre sombria que Stendhal ergueu visando fazer a fuga parecer ainda mais impossível. Trancado em sua cela, Fabrice se apaixona pela primeira vez, pela filha de seu carcereiro, e se encontra em júbilo; de fato, ele fica tão maravilhosamente contente que resiste a todas as tentativas de ajudá-lo a se libertar. Ele pergunta: "Quem já escapou de um lugar onde está extaticamente feliz, para se lançar em um exílio temeroso...?"

Vá a Parma, siga até a Piazza del Duomo enquanto o sol do fim de tarde atinge o alto do Batistério, e faça a si mesmo a mesma pergunta.
  • Dave Yoder/The New York Times

    Pessoas aguardam o ínicio de concerto no Teatro Regio di Parma


Para chegar lá

A forma mais direta de se chegar a Parma é tomando um voo para Milão e então outro voo para Parma. Outra alternativa mais barata, porém levemente mais complicada, é voar para Milão e tomar o trem para Parma, uma jornada que pode levar entre pouco mais de uma hora a quase duas, dependendo de qual dos muitos trens diários você tomar (detalhes em www.raileurope.com/index.html). O minúsculo aeroporto de Parma fica a apenas poucos quilômetros da cidade; um serviço de ônibus leva ao centro, além de táxis.

Assim que você chegar ao centro, tudo fica a uma fácil distância de caminhada - ou é possível alugar uma bicicleta e fazer de conta que é um morador local.

Onde ficar

Para mim, há apenas um lugar realmente satisfatório para se hospedar em Parma, o Palazzo Dalla Rosa Prati (Strada al Duomo, 7; 39-0521-386429; www.palazzodallarosaprati.it), que oferece suítes com quitinete em um palácio belamente reformado, na Piazza del Duomo. Uma pequena suíte custa 180 euros para duas pessoas. Há outros hotéis em Parma, mas eles são empreendimentos modernos, sem alma.

O Hotel Torino (Borgo Angelo Mazza, 7; 39-0521-281046; www.hotel-torino.it) é amistoso, despretensioso e bem confortável - além do bom preço, a partir de 95 euros por um quarto duplo, com café da manhã incluso.

Onde comer

Refeições são um prazer em Parma; se estiver de dieta, é melhor ficar em casa. Um almoço para duas pessoas, com vinho, é claro, custará cerca de 60 euros; o jantar, com mais vinho, cerca de 90 euros. Também há restaurantes finos, mas qual o sentido quando tantas trattorias despretensiosas podem servir massas divinas?

La Filoma (Via 20 Marzo, 15; 39-0521-206181). A decoração é meio engraçadinha, mas a comida é impecável. Experimente o risoto com prosciutto e parmesão - soa óbvio demais, mas os sabores espantarão você.

La Greppia (Strada Giuseppe Garibaldi, 39/A; 39-0521-233686) é mais formal do que o necessário, um pouco caro e o cardápio é mais amplo.

Sorelle Picchi (Strada Farini, 27; 39-0521-233528) é o único aberto na hora do almoço. Não perca o salame.

La Duchessa (39-0521-235962), na Piazza Garibaldi, serve pizza de altíssima qualidade.

O que ler

"A Cartuxa de Parma", de Stendhal, e a autobiografia deste, chamada "La Vie de Henri Brulard" (ao longo de sua carreira, ele usou mais de 200 pseudônimos; não é preciso dizer, não há nada sincero neste seu impulso autobiográfico).

Para uma análise crítica da obra de Stendhal, veja "The Gates of Horn: A Study of Five French Realists", de Harry Levin (Oxford). "Correggio", de David Ekserdjian (Yale), é um livro de mesa de tirar o fôlego, além de um tratado sobre a obra do artista.

Adam Begley, um ex-editor de livros do "The New York Observer", está trabalhando em uma biografia de John Updike

Tradução: George El Khouri Andolfato

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