UOL Viagem

30/06/2008 - 22h31

Na Namíbia, lembretes vivos do passado colonial da África

JOSHUA HAMMER
New York Times Syndicate

Fotos Mark Simon/NYT

Influência alemã pode ser vista em construções em Swakopmund, na Namíbia

Influência alemã pode ser vista em construções em Swakopmund, na Namíbia

Era próximo do anoitecer em Swakopmund, na costa desértica da Namíbia, e no Kiki's Pub, junto à Kaiser-Wilhelm-Strasse, a Pilsener começava a jorrar.

Girando em um banquinho com um caneco de Hansa Draft em punho, um sujeito robusto em bermuda safári e com bigode e suíças grisalhas estava conversando animadamente em alemão com o jovem barman. Garçonetes carregando a pesca do dia cruzavam a sala, suas paredes decoradas com mapas alemães da África da era colonial e fotos de cor sépia de soldados da Schutztruppe (a força de proteção alemã) montados em camelos na mata.

Enquanto seguíamos para a porta, o barman se despediu de nós com um cordial auf wiedersehen. Então saímos em meio a uma forte brisa marítima e caminhamos até nossa pousada, a Prinzessin Rupprecht, um ex-hospital militar construído em 1908, passando por um quartel do Exército da virada do século passado.

Espremida entre o deserto de Namib e o frio Atlântico Sul, Swakopmund foi fundada em 1892 como um porto de entrada para a África para a Schutztruppe. Hoje, ela tem a sensação deslocada de um resort do mar Báltico situado nos trópicos (arquitetura ornamentada ao estilo Wilhelminische sobreposta a palmeiras e um movimentado mercado de artesanato africano). Talvez também seja o vestígio mais envolvente de uma era passada: os 30 anos, de 1884 a 1914, em que a Alemanha governou a Deutsche Sudwest Afrika, um protetorado vasto, esparsamente povoado, margeado a oeste pelo Atlântico e ao leste pelo deserto de Kalahari.

Uma força sul-africana-britânica expulsou o Exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial, e a colônia foi governada pela África do Sul até sua independência, em 1990. Mas a influência da Alemanha permanece mais forte lá do que em qualquer outra de suas antigas possessões africanas, incluindo Camarões, Togo e Tanzânia. Isto se deve em grande parte aos milhares de descendentes de colonos alemães que permaneceram no país, mantendo viva a língua e tradições culturais.

Em meados de abril, eu parti em uma viagem de cinco dias, por mais de 3.200 quilômetros de estrada, pela Namíbia com um fotógrafo, Mark Simon, para retraçar os passos dos colonizadores alemães e conjurar uma época desaparecida de aventura e conquista brutal. Em Windoek (a pronúncia é vint-huk), a sonolenta capital do planalto central, nós alugamos um Toyota com tração em duas rodas e dirigi 800 quilômetros no sentido sudoeste, na principal estrada para Lüderitz, onde teve início a experiência alemã na África.

Em 1883, Heinrich Vogelsang, o agente de 21 anos de um mercador aventureiro de Bremen, Adolf Lüderitz, atracou uma pequena embarcação em um porto natural conhecido como Angra Pequena. Ao desembarcar, Vogelsang encontrou um trecho de rocha e dunas de areia sem água para beber e com apenas uma trilha de terra, difícil de percorrer com carro de boi, levando ao interior. Marchando terra adentro, Vogelsang se encontrou com o chefe local da tribo Nama, Joseph Fredericks, e comprou a baía e o território ao redor por 100 libras britânicas e 200 rifles.


Turistas alemães fotografam indígenas Himba em Swakopmund, na Namíbia


O minúsculo assentamento que Vogelsang estabeleceu, Lüderitz, ainda tem o ar de um entreposto no fim do mundo. Nós caminhamos sob um implacável sol do deserto, passando por prédios estilo Jugendstil de cor pastel, e subimos até uma igreja luterana centenária empoleirada em um afloramento amedrontador com vista para a baía.

Em Shark Island (Haifischinsel), um banco rochoso ligado ao continente por uma ponte, placas comemoram tanto Vogelsang quanto seu empregador ambicioso. Em 1884, após expandir enormemente seu território por meio de mais compras de terras, Lüderitz persuadiu Bismarck a declarar a região um protetorado e enviar um administrador e soldados para manutenção da lei alemã.

Lüderitz sonhava em descobrir uma série de minerais em seu território. Em 1886, durante sua segunda viagem à África, ele desapareceu enquanto procurava a foz do rio Orange, a fronteira entre a África do Sul e a África do Sudoeste, supostamente se afogando no frio Atlântico. Vinte e dois anos depois, um trabalhador ferroviário que limpava areia dos trilhos recém assentados perto da aldeia de Lüderitz encontrou um minúsculo diamante. Nas várias décadas que se seguiram, milhões de quilates foram extraídos do deserto costeiro.

A 6,5 quilômetros de Lüderitz há uma curiosa recordação destes dias de corrida aos diamantes: Kolmanskop, uma empresa construída em 1908 e que fechou nos anos 50, quando a mina próxima foi esgotada. Alguns prédios estão abandonados e cheios de areia; outros estão estranhamente congelados no tempo, incluindo o Kasino, ou centro recreativo, com um pátio de estacas de madeira e um palco de ópera onde astros alemães em turnê cantavam áreas para executivos solitários da mina.

Deixando Kolmanskop, nós saímos da estrada pavimentada e seguimos para o norte, através do deserto de Namib por trilhas de cascalho, levantando nuvens de pó. A certa altura, ficamos atolados por duas horas em um leito de rio normalmente seco que, devido as chuvas incomumente pesadas para esta estação, se transformou em lama. (Um fazendeiro nos rebocou com seu caminhão com tração nas quatro rodas e um cabo de aço.)

As chuvas deixaram o deserto vibrantemente verde. Antílopes, órix e avestruzes corriam pela mata; o terreno plano feito panqueca passou a mudar para colinas gentilmente arredondadas e testemunhos trapezoidais de arenito, com uma propriedade ocasional solitária aparecendo na vastidão. Após um dia inteiro dirigindo, nós paramos diante de uma visão saída diretamente da Europa medieval: o castelo Duwisib, uma fortaleza com torres de arenito vermelho construída em 1908 por um capitão aposentado da Schutztruppe, Hansheinrich von Wolf, usando fundos fornecidos por sua esposa herdeira americana, Jayta.

Duwisib tem um aspecto de sonho, com salões cheios de velhos retratos de nobres saxões, imagens de Zeppelin pintadas nas paredes e janelas francesas fornecendo vistas panorâmicas da área ao redor. Os Von Wolfs viveram lá até 1914; Von Wolf se alistou no Exército alemão e foi enviado para lutar na Batalha de Somme, onde foi morto por uma granada em 1915.


Túmulos dos soldados da Schutztruppe (a força de proteção alemã) mortos em Waterberg na revolta herrera


Este criador condenado do kitsch medieval romântico também participou de um dos capítulos mais sangrentos da história pré-Holocausto da Alemanha. Von Wolf ingressou na Schutztruppe em 1904, no mesmo ano em que Samuel Maharero, o chefe supremo dos harreros, liderou uma rebelião contra o domínio alemão. Após matar uma centena de lojistas e agricultores no território herrero, perto de Windhoek, Maharero e seus guerreiros se retiraram para o norte, para Waterberg, um planalto de arenito de 48 quilômetros de extensão.

Em agosto de 1904, quatro colunas de soldados alemães cercaram cerca de 80 mil homens, mulheres e crianças herreros em um campo aos pés de Waterberg chamado Hamakari. Milhares morreram sob fogo de metralhadora e ataque de artilharia; os sobreviventes fugiram para o leste até o deserto, perseguidos implacavelmente pelos alemães; a maioria morreu de sede. Alguns poucos milhares de sobreviventes foram enviados para campos de trabalho escravo em Swakopmund e na Shark Island.

Simon e eu subimos com um guia herrero até o topo de Waterberg e, do cume vazio de arenito, olhamos para a vasta planície coberta por acácias espinhosas. No silêncio da manhã, eu tentei imaginar o fogo e fumaça das armas pesadas alemãs, o barulho dos cascos dos cavalos, os gritos das mulheres e crianças herreras fugindo pela mata.

Depois nós dirigimos até Hamakari, o principal campo de batalha, atualmente endereço de uma fazenda privada. Herr Diekmann, um fazendeiro musculoso que é dono do local, nos recebeu diante de sua casa com seus três cães e, quando lhe dissemos que estávamos escrevendo uma história sobre a "era alemã" na Namíbia, ele ficou furiosamente defensivo. "O que quer dizer com 'erro'?", ele respondeu. "Não houve 'erro alemão'."

Então ele ordenou que deixássemos sua propriedade.

O mal-entendido e a hostilidade de Diekmann serviram como um lembrete de que a tragédia de Waterberg permanece fonte de controvérsia amarga. O debate coloca historiadores que vêem a carnificina como um prenúncio do Holocausto contra aqueles que a consideram não diferente das guerras tribais britânicas na África do Sul e Rodésia. Nós deixamos Hamakari e retornamos à estrada principal em Windhoek, com o pensamento de que as ambições malucas de um sonhador de Bremen terminaram em tamanho derramamento de sangue nas matas africanas.

Tradução: George El Khouri Andolfato

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