UOL Viagem

20/02/2008 - 18h29

Diário de viagem: Picos nevados e etnias exóticas em uma das mais belas trilhas do Himalaia

MARCEL VINCENTI
Colaboração para o UOL, do Nepal

Marcel Vincenti/UOL

Caminho a Muktinath, vilarejo sagrado a 3.750 metros de altitude

Caminho a Muktinath, vilarejo sagrado a 3.750 metros de altitude

O vilarejo de Naya Pul, no Nepal, é a porta de entrada de uma das mais famosas trilhas do Himalaia: a Jomsom Trek. Cheio de casebres decrépitos, vielas sujas, esse povoado parece não querer dar boas-vindas aos viajantes. Um modesto templo hindu, quase escondido, é a única coisa que me faz lembrar por que vim até aqui: almejo conhecer um pouco da mística que envolve a mais alta cordilheira do mundo.

Os hindus vêem o Himalaia como o local de meditação de Shiva, um de seus mais venerados deuses. Monges budistas, por sua vez, encontram nessas montanhas um cenário perfeito para erguer mosteiros. E eu estou disposto a andar muito para ir ao encontro de tudo isso: serão mais de 100 km entre Naya Pul e a cidade sagrada de Muktinath, o destino final.

O céu, hoje, está nublado. Deixo algumas rúpias no templo e rogo por tempo aberto nos próximos dias. Como retribuição, um sacerdote borra em minha testa, com tinta vermelha, o terceiro olho, a abertura da consciência para planos superiores.

Montanha mágica

Em Naya Pul a altitude é ainda baixa: 1.070 metros. As colinas que cercam a vila estão forradas com o verde das árvores. Empreendo viagem. A trilha, uma alternância de pedras incrustadas no chão e terra batida, segue às margens do rio Modi Khola, uma torrente azul-esverdeada pontuada por grandes rochas.

A presença humana é escassa por aqui. Silenciosos casebres com telhado de feno se destacam sobre socalcos nas colinas. Plantações de subsistência vicejam por todos os lados. Atrás de algumas cabras, dois velhos de pele bronze e roupas pobres cruzam comigo e entoam um simpático "namaste!" (forma de saudação no Nepal belamente traduzida como "eu cumprimento o Deus que existe dentro de ti").

O percurso até a primeira parada, o vilarejo de Hille (1.495 m), leva uma hora. São algumas subidas até lá e, como escolhi não contratar carregador de bagagem, o cansaço já me faz companhia. Encosto-me em um muro de pedras empilhadas e observo o local: Hille é um vilarejo bonito, com casinhas pitorescas de pedra e vielas acolhedoras. No quintal de uma casa, uma festa animada, com homens jogando baralho e falando alto.

A população é em sua maioria Gurung, etnia que, por sua índole guerreira, formou parte do temido exército nepalês dos Gurkhas. Sua feição ostenta traços mongóis, com olhos puxados e pele morena. A religião local é um sincretismo de crenças budistas, práticas hinduístas e fé no poder de xamãs. Um jovem, com um copo de chyia (chá) na mão, se aproxima de mim. Após me oferecer a bebida, conta que a festa é para um senhor que acaba de morrer. "Aqui as pessoas celebram quando alguém se vai", diz, sorrindo. "É a hora em que todo o povo confraterniza."

Marcel Vincenti/UOL
Mulher da etnia Gurung, de índole guerreira, que povoa o vilarejo de Hille
Deixo rápido Hille, pois meu objetivo é dormir em Ghorapani, a 2.775 metros de altitude. Sinto-me ansioso em subir o máximo possível e ver logo as montanhas nevadas do Himalaia. A trilha, porém, vira subitamente uma escadaria de pedras sem fim, difícil de ser superada. Uma senhora Gurung me vende um cajado de madeira por dez rúpias (R$ 0,25). Galgo todos os disformes degraus, com o vale à minha direita, as casas já minúsculas nas colinas. Quando chego a Ulleri, vila anterior a Ghorapani, a 2.070 metros, quatro horas depois, estou exausto.

Tenho, entretanto, a companhia de um jovem nepalês, Suman Biki, 21 anos, que, enquanto cortava lenha, me viu passar e perguntou de onde eu era. "Brasil" foi a resposta. "Ronaldo, Ronaldino (sic)! Os melhores!", ele retrucou. A conversa era em inglês, falado precariamente pelos locais, acostumados a receber os turistas da trilha. Ficamos amigos e ele insistiu em apresentar-me seu lar no vilarejo.

Suman se gaba de ter "a casa mais bonita de Ulleri". Trata-se de um sobrado de tijolos, com janelas de madeira talhada e um bonito pórtico. Lá dentro, um só cômodo serve de sala, quarto e cozinha. Sobre o chão de terra batida, à luz do lampião, a mãe de Suman faz o jantar. Em silêncio, me oferece um copo com raksi (a cachaça nepalesa feita de grãos). A casa cheira a mofo.

Vejo de perto a pobreza do Nepal, que muitas vezes desaparece à sombra de suas colossais montanhas. E sinto, já com a visão turva, como uma dose de raksi pode ser perigosa.

No outro dia, no caminho a Ghorapani, lá está ele: o cume nevado do Annapurna Sul, uma imponente montanha de 7.273 metros. Entro em deleite com tamanha beleza. É o Himalaia bem na minha frente! Ao meu lado está o monge sul-coreano Suk Du, trekker como eu, que olha o Annapurna com reverência religiosa. "É mágico", diz.

Paraíso, inferno e mais raksi

Se as teorias do carma estiverem corretas, um burro do Himalaia foi uma pessoa muito malvada em sua última encarnação. Descendo em direção à vila de Tatopani (agora a trilha se torna um íngreme declínio, que de início me deixa muito feliz), cruzo com dezenas de bestas com carga no dorso. Quando empacam, recebem pedradas certeiras -a maioria na face- dos tropeiros que guiam a caravana. E seguem com sua sofrida existência neste mundo de intermináveis sobes-e-desces.

Aqui não há estradas. Todo o transporte é feito sobre tração animal. E humana. Há nepaleses que passam a vida a vencer as montanhas de seu país com pesados cestos de vime nas costas, presos por alças à cabeça. Deparo-me com vários deles. Todos, enquanto caminham lentamente, derramam um olhar resignado no chão. O paraíso de alguns pode ser o inferno de outros.

Marcel Vincenti/UOL
Rua de Tatopani, cidade do Nepal famosa por suas águas termais
A descida até Tatopani, que está a 1.180 metros, é um calvário. Os joelhos doem. Uma vaca sagrada hindu, sentindo que minha presença ameaça suas crias, tenta me atacar. Levo sete horas até ouvir o barulho do Thak Khola, rio azul-turquesa que corre entre os desfiladeiros (considerados os mais altos do mundo) das montanhas Annapurna e Dhaulagiri, ambas com mais de 8.000 metros de altura.

Tatopani é famosa por suas águas termais. Alguns refugiados tibetanos, que têm abandonado seu país desde a invasão chinesa de 1950, vivem lá. Lobsang Phuntso, uma linda oriental de 23 anos, é um deles. Ela administra uma loja de artigos tibetanos na vila. "Meus pais moram no campo de refugiados da cidade de Pokhara, mas tenho que vir até aqui vender meus produtos", conta ela. "É onde posso encontrar turistas."

O vale do Thak Khola, porém, tem uma população dominante: os thakalis, etnia de talentosos comerciantes que se divide entre as crenças do hinduísmo e do budismo. O rio dá o nome a seus habitantes e será meu guia até o final da viagem.

As trilhas se tornam novamente íngremes e, no outro dia, mais sete horas de caminhada, chego ao vilarejo de Ghasa (2.080 m). As nuvens voltam a encobrir as montanhas. Mas tenho sorte em encontrar uma amostra da bela paisagem humana do Nepal: uma enlouquecida festa de porters, os carregadores de bagagem das trilhas. Em volta de uma fogueira, eles tomam raksi, cantam e ensaiam danças interessantíssimas, cheias de movimentos corporais delicados.

Hira Karki, nepalês que dirige um grupo empresarial sul-coreano, está patrocinando a folia. "Os porters são pessoas sofridas, mas muito honestas. Sem eles, as trilhas do Nepal não seriam a mesma coisa." Concordo, entro na festa e acordo no outro dia com dor de cabeça. Maldito raksi!

Platô tibetano

A trilha continuará subindo e tenho que deixar Ghasa cedo. O destino é o vilarejo de Jarkhot. Na vila de Lete, no meio do caminho, uma surpresa: o céu se abre e os picos do Nilgiri surgem no horizonte. Um cobertor de gelo se derrama sobre as onduladas montanhas de 7.000 metros de altitude. Penso como deve ser bom morar neste lugar e ter todo dia, ao alcance dos olhos, semelhante cenário. Nessa região, estradas já começam a ser construídas.

É aqui também que a paisagem começa a mudar drasticamente. Cruzo o leito do Thak Khola (chamado na região de Kali Gandaki), e a viçosa vegetação que o cerca começa a desaparecer. O vale dá lugar a um ambiente cada vez mais árido. A cena religiosa também se transforma: as lung ta (bandeirolas com inscrições de mantras), penduradas entre os postes, e as chaityas (monumentos religiosos) nas colinas indicam que acabo de entrar em território budista. O silêncio, quebrado apenas pelo barulho do vento, traz paz espiritual ao lugar.

Quando chego a Kagbeni, a 2.810 metros, um dia depois, o caminho já se transformou em deserto. O vilarejo está situado na junção do Kali Gandaki com o rio Jhong Khola, às margens do platô tibetano. A sensação é de se haver cruzado a fronteira entre dois universos.

Marcel Vincenti/UOL
Mosteiro budista de Jarkhot, que situa-se ao pé de uma magnífica cordilheira
Jarkhot, a 3.500 metros, meu destino tão esperado, está a três horas dali. Um francês havia me contado, em Tatopani, sobre as belezas dessa ancestral vila budista e eu não via a hora de conhecê-la.

Jarkhot situa-se ao pé de uma magnífica cordilheira. O azul denso do céu faz as montanhas nevadas parecerem nuvens que resolveram se eternizar ali, empedradas. Na viela principal do vilarejo, um monge dá voltas ao redor de uma antiga chaitya, faz girar moinhos de oração e recita mantras. Enquanto desvendo o local, um susto: me deparo com dois demônios de barro, com dentes humanos incrustados na boca. Uma velha moradora me explica que eles estão ali para proteger a vila. A religião nesta área do Nepal tem muita influência do lamaísmo tibetano, que representa algumas de suas divindades com aspecto demoníaco.

Passo dois dias em Jarkhot. Durmo em uma pousada cheia de pulgas -as opções não são muitas por aqui- e como, no almoço e no jantar, o famoso daal bhaat (refeição de arroz, sopa de lentilhas e legumes refogados). Ao meu lado, um porter devora três pratos da comida. Usa apenas a mão direita para levar o alimento à boca (à mão esquerda, nesta região do mundo, se reservam os trabalhos de higiene pessoal).

Muktinath, o último lugar a ser visitado, está a apenas duas horas de caminhada. A trilha de terra batida segue entre montanhas nevadas, mosteiros, pitorescas casas isoladas e cavalarias. O majestoso vale do Jhong Khola fica para trás.

A 3.750 metros de altura, Muktinath ostenta, como um de seus maiores atrativos, uma pira eterna. O vilarejo é sagrado para budistas e hindus. Os primeiros, que têm aqui um grande mosteiro, acreditam que a cidade é casa da divindade chamada Dakini, dançarina do céu. Dizem também que Padmasambhava, o guru indiano que introduziu o budismo no Tibete, tenha feito, no século 8, um retiro espiritual na região.

Já os hindus crêem que o lugar está conectado às suas escrituras sagradas e vêem o fogo eterno como uma emanação do ser supremo Brahma. Também buscam banhar-se em suas bicas d'água, consideradas purificadoras.

Seja como for, Muktinath coroa uma viagem que, sem dúvida, consegue nos levar a planos superiores. Quem quiser ver como misticismo e exóticas etnias residem numa das mais belas moradas do mundo, é só ir até o Himalaia. E dada a beleza estonteante de suas montanhas, não é necessário seguir alguma religião para considerar esse lugar sagrado.

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