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01/08/2006 - 18h56

Homem à vela: Beto Pandiani conta a sua viagem pela Rota Boreal

MARIA EDUARDA BELÉM

Maristela Colucci

O Satélite III em mares árticos

O Satélite III em mares árticos

No dia 12 de maio de 2005 o velejador Beto Pandiani e seu companheiro de vela, Felipe Whitaker, partiram de Nova York, a bordo do catamarã Satélite III, em direção a Groenlândia. Durante noventa dias, os velejadores enfretaram os humores do mar e do vento numa viagem que os levou a cruzar o Círculo Polar Ártico. Ao chegar ao seu destino, em 9 de agosto de 2005, Beto havia completado a sua quinta viagem, a Rota Boreal, que fechou um ciclo de navegações que fez dele o primeiro navegador a conectar os Círculos Polares Norte e Sul numa embarcação sem cabine.

Empresário da noite e ex-sócio de casas noturnas paulistanas conhecidas como o AeroAnta e o Clube Base, Beto começou a levar mais a sério o seu hobby a partir de 1989, quando conquistou o título de campeão norte-americano de Hobiecat 16, em Chicago, nos EUA. "Descobri que gostava de competir, que queria velejar profissionalmente", conta Beto. Em janeiro de 1993, um encontro casual com um amigo deu o empurrão que faltava: "Encontrei o Marcus Sulzbacher por acaso, e daí ele veio conversar comigo sobre um sonho que tinha há tempos de descer num catamarã sem cabine desde Miami até Belize, no Caribe. A coisa amadureceu e foi assim que nasceu a expedição "Entre-Trópicos", que foi de Miami a Ilhabela."

A "Entre-Trópicos" (1994) foi a primeira de uma série de viagens, durou 289 dias, sendo a mais longa de todas. Depois vieram a Rota Austral (2001), que saiu de Puerto Montt no Chile e foi até o Rio; e a travessia do Drake (2003), que partia do Ushuaia na Argentina e cruzava a lendária passagem entre a América do Sul e a Antártida, conhecida por ter no fundo de suas águas mais de 84 embarcações naufragadas.

Após as expedições, Beto encarou a regata Atlantic 1.000, ao lado do também velejador Duncan Ross. Conhecida por ser a mais longa e difícil do mundo para catamarãs sem cabine, a regata percorre mil milhas da costa americana, indo da Flórida até quase a Virgínia. Depois de 12 dias na água, a dupla conquistou o segundo lugar.

Na Rota Boreal, Beto e Felipe passaram três meses velejando até chegar em Sisimut, na Groenlândia. Os relatos da viagem escritos por Beto e os registros fotográficos da rota, realizados por Maristela Colucci, foram reunidos no livro "Rota Boreal, Expedição ao Círculo Polar Ártico", que conta ainda com textos de Ana Augusta Rocha sobre as regiões visitadas pelos velejadores.

Na entrevista que se segue, Beto Pandiani fala sobre a experiência de cruzar o Círculo Polar Ártico a bordo de um catamarã.


UOL - Sua família era de velejadores? Com que idade você começou a velejar?

Beto Pandiani - Minha família não tinha tradição de vela, era meu pai que velejava. Desde os 13 anos, idade eu comprava revistas de barco importadas e sonhava em um dia morar num veleiro, dar a volta ao mundo. Muita gente pensa nisso, né? E é engraçado, porque a vida no mar é muito diferente dessa fantasia bucólica, lúdica, ela é muito mais espartana.

Eu comecei então a me interessar por barco com essa idade, eu queria ter aprendido a velejar, mas não tive chance. Meu pai morreu quando eu tinha 18 anos e eu só comecei anos depois, quando então comprei um HobieCat 16. Um tempo depois entrei numa regata, e daí passei cerca de 10 anos, entre 82 e 92, só pensando nisso, participei de mais ou menos de umas 500 regatas e assim aprendi a velejar direito."


UOL - Como foi a passagem de empresário da noite para velejador profissional?

Pandiani - Com o passar do tempo, comecei a viver um dilema. Não queria mais trabalhar na noite e queria competir em regatas. Só que era uma coisa muito difícil, pouca gente vive no Brasil como profissional de regata. Até o dia que eu encontrei o Marcus Sulzbacher e ele veio conversar comigo sobre um sonho que tinha há tempos de descer num catamarã sem cabine desde Miami até Belize, no Caribe. A coisa amadureceu e foi assim que nasceu a expedição "Entre-Trópicos", que foi de Miami a Ilhabela. Foi concebida e organizada em 93 e realizada em 94. Foi a primeira e mais longa viagem de todas. Durou 289 dias, mas foi a que mais rápido se planejou, em um ano.

De certa forma também a minha experiência como administrador de casa noturna me ajudou a montar e viabilizar o projeto, me deu uma maior capacidade organizacional e uma visão empresarial da coisa.
Por outro lado, a viagem também é um alívio, um momento de recarregar as baterias. A gente mora numa cidade que é a antítese da natureza, né? Não se vê horizonte aqui em São Paulo.

Mas veja bem, eu nunca iria morar numa praia, em Ilhabela, por exemplo. Eu moro em São Paulo porque eu gosto de estar aqui. Eu gosto de produção. Se quando eu viajo fico mais comigo, com a natureza, quando eu volto é meio a devolução disso: é o livro, a palestra, o projeto novo e as conversas. Eu também gosto de estar aqui, de fazer as coisas.


UOL - Quanto tempo é preciso para planejar uma viagem como a da Rota Boreal?

Pandiani - Uma viagem desse porte leva mais ou menos um ano e meio para preparar. Quando nasce a idéia de uma viagem, um roteiro, preciso um tempo para me convencer que sou capaz de fazer. Tem um tempo de amadurecimento da viagem dentro de mim. E eu já descobri que isso leva mais ou menos um ano e meio. É também o quanto leva para organizar os projetos e encontrar os parceiros. E aí, de alguma forma, vão acontecendo aquelas coisas que a gente chama de coincidência. Eu recebo um telefonema um amigo que tem umas dicas pra dar. Aparece um livro na mão sobre o assunto, sabe? É o tempo de acontecer de coisas que vão me munindo de informação e me dando confiança para fazer a viagem. Mas isso tudo é um processo que acontece de dentro para fora.


UOL - Como é o cotidiano de uma viagem dessas? Vocês têm alguma espécie de apoio?

Pandiani - Cada viagem teve um jeito. No caso da Rota Boreal, contamos com o apoio em terra do motorhome (uma van), que ia nos acompanhando. Marcávamos um ponto onde nos encontrar e, ao final do dia, saíamos do mar, desmontávamos o barco e descansávamos em terra. É uma dinâmica diferente da dos veleiros grandes, que navegam longe da costa e podem ficar até dois meses sem precisar parar para abastecer.

A partir do Labrador, na costa do Canadá, contamos com a companhia do Kotic II, barco capitaneado pelo Oleg Bely, que é provavelmente o cara mais experiente do mundo em se falando de velejadas polares. Eles estavam lá para nos dar apoio em caso de necessidade. Afinal, na região polar as condições climáticas não são só instáveis como violentas e no mar não tem perdão, não tem reza que resolva. E não dá para fazer uma viagem como essa assumindo o risco de morrer. Esses apoios tornaram também possível a documentação fotográfica feita pela Maristela Colucci.


UOL - O que vocês levam no catamarã com vocês?

Pandiani - Olha, você não vai acreditar no que cabe ali: um notebook, câmera fotográfica, câmera de vídeo, baterias, fitas, telefones, GPS, lanternas, rádio VHF, bolsa com utensílios de cozinha, barraca, sacos de dormir, primeiros socorros, peças sobressalentes, ferramentas, rastreador via satélite, roupas, objetos de uso pessoal, comida e água.


UOL - E como Felipe Whitaker entrou na história?

Pandiani - O Felipe era meu amigo de vela e sempre dizia que quando desse toparia fazer uma viagem dessas comigo. Aconteceu que o Fábio Tozzi, que seria meu parceiro na Rota Boreal a princípio, desistiu a dois meses da partida. Eu liguei então para três pessoas dizendo que precisava de um tripulante, uma delas era o Felipe, e ele me ligou de volta apenas duas horas depois dizendo que sim. O cara fez uma revolução na vida dele, deixou tudo. E eu senti nessa atitude que o cara realmente tava afim e pra mim era importante vontade. E ele entrou com alma na viagem, ele ajudou muito.


UOL - Qual foi a situação mais difícil que vocês enfrentaram na viagem?

Pandiani - Olha, foi na entrada do porto de Halifax, na Nova Escócia. Estávamos em meio a uma neblina fortíssima, a visibilidade estava péssima. Elegemos um lado para entrar na baía e seguimos com cuidado. De repente, comecei a sentir um cheiro de óleo, quando ouvimos então o apito de um navio anunciando a sua chegada. Tínhamos um navio bem atrás de nós, que não nos via, assim como nós não enxergávamos a ele. Rapidamente viramos o barco no meio da neblina, optei por tomar uma direção em que o vento nos permitia tomar uma maior velocidade. Instantes depois, escutamos outro apito, o barco passara ao nosso lado. Quando passou a neblina, o vimos, gigante, mais à frente.


UOL - E qual a próxima viagem?

Pandiani - A próxima viagem será para a Polinésia, vou navegar pelas águas quentes do Pacífico. Eu sempre quis conhecer aquele lugar no meio do nada. Durante a viagem percorreremos um trecho de cerca de 2.400 milhas sem parar em terra. Sairemos de Antofagasta, no Chile, em outubro de 2007, seguiremos para a Ilha Marguerita e daí para o Tahiti. Ao chegar lá deixaremos o barco, voltaremos para o Brasil de avião, esperaremos seis meses até passar a estação dos furacões e voltaremos para continuar a segunda fase da viagem até a Austrália. Meu companheiro dessa vez será o Igor Bely, filho do Oleg.

O barco também vai ser um pouco maior, terá 25 pés, em vez dos 21 do Satélite III. Isso entre outras coisas vai nos permitir ter a bordo um dessalinizador, que vai melhorar a nossa autonomia de navegação. Água potável representa um dos maiores pesos que se pode levar em uma viagem.


Livro:
"Rota Boreal, Expedição ao Círculo Polar Ártico"
Editora Terra Virgem
Textos: Beto Pandiani e Ana Augusta Rocha
Fotos: Maristela Colucci
Páginas: 120
Preço: R$ 55

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