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Edição: Memórias de viagem

Uma visita a Buenos Aires não pode deixar de passar pela tangueria

Buena onda

O último tango em Buenos Aires

Chique, lúdica e um pouco dramática, a capital argentina é um lugar ótimo para brincar de ser outra pessoa

Por
Heloisa Helvécia

Uma visita a Buenos Aires não pode deixar de passar pela tangueria

Como sabe ser triste o casal de bailarinos lindos e sarados que gira no palco minúsculo. Aquilo tudo: ele agarra ela pela cintura, ela quase encosta a panturrilha na orelha, olhares 43, sobrecenhos carregados, mãos crispadas, rostos grudados, pernas enganchadas, um se abaixa quase ao chão, depois é o outro que se dobra, um tal de puxar para si o parceiro e em seguida empurrar para longe, dá-lhe drama, é ruim, mas é bom. Viva La Ventana, a tangueria lúgubre instalada num velho cortiço restaurado, no miolo de San Telmo. Lá é possível chafurdar no balé da paixão e chorar no escuro, sem medo de ser infeliz.


É o último tango em Buenos Aires. Mas é como se fosse o primeiro, porque o viajante que agora o assiste decide se desprogramar, arquivar o preconceito com esse tipo de atração "folclórica". Antes da entrega total ao espetáculo são necessários alguns pequenos esforços. Um deles é abstrair o fato de que o público é feito de turmas alegrinhas -há brasileiros como você, eles falam muito, e muito alto. Outro esforço é afastar o fotógrafo que arrasta turistas para "clics", no cenário de anos 40. O lambe-lambe se sente: suas lábia, insistência e postura corporal são um bom retrato da invejável auto-estima portenha.


Por último, é preciso relevar o jantar standard incluído no pacote -é mais-ou-menos, o jantar, mas isso é o de menos, porque talvez o visitante esteja a trabalho na Argentina, engordando as estatísticas (o fluxo de executivos brasileiros para lá cresceu 60% no último ano). Talvez ele nem tenha fome no momento, devido a um lauto almoço de negócios, horas antes, alhures, quem sabe em Puerto Madero ou no último endereço da moda em Palermo Viejo. O que não falta em la ciudad é lugar legal para comer, como já foi dito e escrito à náusea. Então, não custa deixar de pose e se jogar, de coração e vísceras, na experiência pura do tango.


Karime Xavier
Atrações transparentes na feirinha da praça

Fetiches para todos

À luz do dia, San Telmo é outra coisa. O bairro mais cheio de história da cidade, com ruas estreitas de paralelepípedos, está banhado agora pela "buena onda" que deve, necessariamente, marcar um fim de semana em Buenos Aires. Ou quatro dias, que sejam -esse é o tempo médio que empresários brasileiros ficam por lá, segundo o governo argentino.


Dois dias para o dever, dois dias para o lazer.


O lazer também é cheio de deveres, e dez entre dez brochuras dedicadas ao turismo de negócios vão dizer que o executivo "deve" ir à feira de San Telmo no domingo, quando a praça Dorrego é tomada por 270 barraquinhas e músicos, pintores, atores, dançarinos, gente de todo tipo de talento que se defende ali, aproveitando a circulação de dinheiro. São cerca de 15 mil pessoas, turistas na maioria.


Nos ouvidos de quem passa, a língua portuguesa (que já faz parte do currículo nas faculdades de turismo argentinas) rivaliza com os choramingos do tango. Além da brasileirada feliz, o que mais tem, na chamada feira de antiguidades, é bugiganga usada, artesanato, essas coisas.


E daí? Tudo é festa quando o sol acende tanta tranqueirada de prata, atravessa as pilhas de vidros coloridos e aquece os gatos, que fazem pose nos parapeitos dos casarios coloniais, baixos e muito bem cuidados. Antiguidades com "a" maiúsculo não participam do mercado livre: ficam protegidas atrás de vitrines, nos mais de 500 antiquários luxuosos, situados nas ruas em volta da praça (mas é melhor só olhar, porque domingo não é dia de fazer negócio grande).


É possível, entretanto, desde que não se tenha pressa, achar na feirinha mesmo um acessório "vintage", quem não precisa de um fetiche, de um resquício de tempos mais ricos? O câmbio compensa, quem sabe esse porta-pílulas de prata, pequeno o suficiente para não aumentar a bagagem já meio pesada de vinho, alfajoles e otras cositas más? Pena que, na tampa, a inicial gravada em ouro não seja a sua.


Um fim de semana na capital argentina é um luxo marcado por tentações gastronômicas e alto astral portenho

Buenos Aires é um lugar ótimo para brincar de ser outra pessoa e, dentro dela, o Marriott Plaza é o cenário que potencializa a farsa. O hotel não é "como o seu lar", e aí é que está a graça. Talvez o visitante até tenha em casa, ao lado da cama, um maço de flores sempre frescas, para apoiar aquela frase do Oscar Wilde sobre a necessidade do supérfluo. Flores para, na hora de dormir, a pessoa "dar mais importância ao sonho" (e aqui entra uma referência ao conterrâneo Borges). Talvez o hóspede esteja acostumado a deitar sobre lençóis de não sei quantos fios egípcios, e talvez também tenha, no seu lar, a comodidade de uma piscina. Mas só o Marriott tem piscina ao ar livre com vista para os jardins impecáveis da plaza San Martin e a igreja Santo Sacramento -onde se casam apenas os bacanas da sociedade portenha.


Naquela que se jacta de ser "a mais européia" das cidades do continente, o Marriott foi o primeiro dos hotéis luxuosos de estilo europeu. Está plantado desde 1909 aos pés da calle Florida, com a fachada afrancesada olhando para a praça elegante. Nos velhos tempos, tinha estacionamento privativo para as carruagens dos aristocratas e, frescura máxima, um louco sistema de ar-condicionado. Consistia em barras de gelo espalhadas sob ventiladores de tecido que, graças à muita energia humana, balançavam, espargindo o ar refrigerado pelo ambiente.


Os ventiladores de procedência indiana ainda estão lá, mas felizmente já funcionam com força elétrica. No restaurante principal, assombram os hóspedes, juntamente com os suntuosos ladrilhos holandeses e outras relíquias, ostentadas em redomas encaixadas nas paredes. O prédio passou por reformas e mais reformas, ganhou duas torres, mas a história está toda lá, preservada.


Altos funcionários de empresas do Brasil respondem por 20% da ocupação do Marriott, que acomoda executivos e vips de várias partes do mundo e toda ordem de celebridades, de novos-ricos do esporte a ícones "racé", como Catherine Deneuve.


Karime Xavier
Galeria Pacífico, suntuoso shopping em prédio de 1890

O fotógrafo peruano e "jet-setter" Mario Testino também deixou marcas por lá. Clicou um editorial de moda no bar classudo, eleito um dos dez melhores do mundo pela revista de negócios "Forbes". Difícil imaginar as modelos fazendo carão para a "Vogue" América nesse lugar tão testosterona -agora cheio de hóspedes executivos, impressionando seus clientes com bebidas premium, decoração sóbria e pianinho. Testino teria se revelado tranqüilo e gentil, segundo funcionários. Mas as mesmas fontes adoram gongar as produtoras da revista que o acompanharam: "Umas bruxas arrogantes e mal-educadas". Sem falar que as ditadoras fashion viraram o lugar de cabeça para baixo. Valeria um reino poder presenciar esse confronto chique entre o império do efêmero e o poder secular da tradição.


Basta de hotel. É que a suíte é tão cálida que, dependendo do clima (o de dentro e o de fora), a tentação é a de afundar na cama e não arredar os pés dali. Mas, vamos lá. o centro financeiro fica tão pertinho, a calle Florida chama para as compras, vamos correr atrás da buena onda e alegrar o coração com mais um tênis Puma e outro suéter angorá -que vai soltar muito pêlo por toda a sua vida útil, é verdade, e vai ser menos útil com o avanço do aquecimento global, mas tudo bem, o truque é guardar o cashmere na geladeira.


A Florida pode ser popular demais para um viajante cinco-estrelas. Ainda bem que o consumo ferve também na Santa Fé ou na sofisticada avenida Alvear. Já que se está no inferno, ou seja, no território glamouroso e tentador do bairro da Recoleta, melhor abraçar o capeta. Significa que depois de passear por lá, babar em frente ao prédio "belle époque" da embaixada francesa e olhar muito para o alto e para os palacetes erguidos nos tempos áureos, só resta subir no Armani Caffé. No térreo fica a loja com precinhos de Milão. No terceiro piso está o restaurante megamoderno, um salão inundado de luz natural. A decoração gráfica, em preto e prata, combina com a gente jovem e homogênea que almoça lá, em uniformes "sou simples e chique".


Tão chique quanto, mas bem mais complexo, é o prédio da Bolsa de Comércio, na rua 25 de Maio. A porta giratória atira o forasteiro da confusão de um protesto qualquer que acontece no meio da rua para o hall imponente, com seus elevadores cheirando a Luís 16. A porta é o túnel do tempo, e leva ao esplendor econômico fossilizado em vitrais estupendos, com motivos agrícolas, gado, símbolos da abundância perdida. Ao subir a escada em caracol, com corrimões de ferro retorcido, você dá com tapeçarias européias do século 16 e uma absurda cascata de cristal que pende do teto. Mas, nesta tarde, os escritórios superiores parecem museus, povoados de mobiliário valioso, obras de arte, mesas de reunião imensas, vazias, a madeira é tão reluzente que comove. Pelo menos o salão principal, um auditório com colunas de mármore colorido, é compartilhado com a comunidade e regularmente aberto para concertos e shows gratuitos. Mas hoje tudo é silêncio só. Dentro do luxo, o que tem mais charme e vida é a lanchonete decadente, onde velhinhos jogam xadrez enquanto seguem pelas telas o movimento dos pregões.


Um fim de semana em Buenos Aires, por supuesto, exige uma corrida ao Tortoni para um "cortado". O café mais antigo do país foi QG de Borges, não dá para desviar tanto do circuito óbvio. Mas o visitante uma hora se cansa de tanta eternidade, e sai fugindo para os lados do moderno. Antes do aeroporto, o destino é La Imprenta, sub-bairro do momento, cheio de lojas descoladas e restaurantes idem, tudo espremido na calle Migueletes. A sorveteria Persicco, na esquina da Migueletes com a Maure, tem ótimos "helados" artesanais, pessoas bonitas e a maior concentração de lap-tops por metro quadrado. Lá, a internet é grátis. Então, ao trabalho. Abre esse computador, se liga. Chega de viajar.


As jornalistas Heloísa Helvecia e Karime Xavier viajaram a convite do Marriott Plaza Hotel e da Gol Linhas Aéreas Inteligentes.




Hotéis

Faena Hotel + Universe
445 Martha Salotti
Tel. (00/xx/54/11)
4010-9000
www.faenahotel
anduniverse.com
Para quem gosta de delírio e de design. Extravagâncias assinadas por Philippe Starck estão espalhadas pelo hotel, instalado em um prédio de 1902. Diárias a partir de US$ 435.
Marriott Plaza
Florida 1005
Tel. (00/xx/54/11)
4318-3000
www.marriott.com O primeiro hotel de luxo da cidade, fundado em 1909. Diárias a partir de US$ 175.
Bo-Bo
Guatemala, 4.882, Palermo Viejo
Tel. (00/xx/54/11)
4774-0505
www.bobohotel.com Oferece apenas sete quartos, um diferente do outro. O "argentino" vale por causa da janela gigantesca, de frente para o jardim, e pela jacuzzi. Diárias a partir de US$ 135.

Restaurantes

El Obrero
Cafarena, 64
Tel. (00/xx/54/11)
4362-9912
Serve um delicioso ravióli de espinafre com manjericão, recheado de mussarela e parmesão. Mexilhões e arroz com lula são outros pratos fortes da casa.
Olsen
Gorritti, 5.870
Tel. (00/xx/54/11)
4776-7677
Bar e restaurante escandinavo com mais de 60 tipos de vodca.

Não deixe de ir

Café Tortoni
Avenida de
Mayo, 825
Tel. (00/xx/54/11)
4342-4328 Vale a pena conferir um espetáculo de tango. Reserve com antecedência.
Teatro Cólon
Cerrito, 618
Tel: (00/xx/54/11)
4378-7100
www.teatrocolon.
org.ar
Há visitas monitoradas que contam a história do teatro e de suas peças principais.
Malba
Av. Figueroa
Alcorta, 3415
Tel: (00/xx/54/11)
4808-6500
www.malba.org.ar Obras famosas de Tarsila do Amaral e da mexicana Frida Kahlo.