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Em passeio sensorial em SP, cegos e voluntários conhecem produção de café

Daniel Nunes Gonçalves

Colaboração para o UOL

09/09/2016 19h49

Você já imaginou de que forma um portador de deficiência visual aproveita uma viagem? Afinal, sem o sentido da visão, teoricamente, não seria possível curtir a beleza dos lugares. Tentando entender um pouco da questão, aceitei um convite para ser voluntário de uma mini-excursão de cegos, com destino a uma rota sensorial no polo cafeeiro no oeste do Estado de São Paulo.

A iniciativa de levar dez pessoas com baixa ou nenhuma visão, ao lado de seis voluntários “videntes”, partiu de Audmara Veronese, estudante do curso de guia de turismo do Senac. Mesmo com mais de seis milhões de pessoas com deficiência visual (sendo 582 mil cegas, de acordo com o Censo de 2010), o Brasil não possui agências especializadas nesse público.

Audmara Veronese, estudante do curso de guia de turismo do Senac, colhe grãos de café com o gestor público Mario Brancia em iniciativa inédita no mercado - Daniel Nunes Gonçalves/UOL - Daniel Nunes Gonçalves/UOL
Audmara Veronese colhe grãos de café com o gestor público Mario Brancia
Imagem: Daniel Nunes Gonçalves/UOL

“Quero mostrar a esse mercado que um serviço de guiamento especializado pode proporcionar uma experiência rica para quem tem deficiência visual e também transformadora para os acompanhantes e anfitriões”, explica.

A importância do sentir
O ponto de encontro para a viagem foi o Centro Cultural Vergueiro, em uma manhã de sábado. Muitos dos participantes já haviam viajado com a ONG Grupo Terra, que promove passeios informais para cegos. “Nossas rotas incluem aventuras na natureza, como rafting e tirolesa, nas quais a sensação é mais importante que a paisagem”, conta a professora Amélia Hashimoto, há 10 anos na ONG.

Microônibus que parte do Centro Cultural São Paulo, na capital paulista: 200km percorridos durante três horas até o polo cafeeiro do interior de São Paulo - Daniel Nunes Gonçalves/UOL - Daniel Nunes Gonçalves/UOL
Grupo percorreu 200km até o polo cafeeiro no interior de São Paulo
Imagem: Daniel Nunes Gonçalves/UOL

Após três horas de viagem e 200km percorridos, chegamos a Espírito Santo do Pinhal, cidade que desenvolveu o projeto “Enxergando com os Olhos da Alma”. Nele, os atrativos do Centro Histórico foram mapeados com a ajuda de três pessoas com deficiência visual. Depois, foram impressos guias para que os voluntários narrem, com detalhes, a arquitetura dos preservados casarões do século 19, antes habitados pelos barões do café.

Durante o passeio, um dos viajantes com deficiência visual aproveitava para fotografar as ruas históricas do lugar. Sua ideia era ter o prazer de descrever a cena para os netos quando voltasse da viagem, mostrando o registro.

Tocar, cheirar, morder
O auge da experiência sensorial foi a visita à fazenda cafeeira Retiro Santo Antônio, já no município vizinho de Santo Antônio do Jardim. Jefferson Adorno, proprietário do local, recebeu o grupo com café quente e cheiroso. Depois, apresentou a embalagem com texto em braile do café produzido na fazenda e convidou a turma para passear pelo campo e participar da colheita – que acontece entre maio e agosto.

De braços dados com os cegos de bengala, nós, os voluntários, caminhamos descrevendo as fileiras de pés de café e os orientamos sobre possíveis obstáculos nas trilhas. Neste momento, me chamou a atenção ouvir de cegos como a pedagoga Roselene Celoto (que todo ano desfila vestida de baiana em escolas de samba no Carnaval) frases como “que lindo!”.

Deficientes visuais e voluntários assistentes mordem os grãos para sentir a textura e sentir se estão verdes, maduros ou passados - Daniel Nunes Gonçalves/UOL - Daniel Nunes Gonçalves/UOL
Deficientes visuais e voluntários assistentes mordem os grãos para sentir a textura
Imagem: Daniel Nunes Gonçalves/UOL

Alinhado diante dos arbustos mais carregados, o grupo passou a fazer a colheita. O produtor Jefferson estimulava que os participantes tocassem os grãos e até mordessem alguns deles, tentando diferenciar a textura e o sabor de grãos verdes e duros, maduros e macios (os avermelhados), passados e supermoles (os pretos). Os visitantes também foram convidados a mexer na terra e a plantar uma árvore.

O gestor público Mario Brancia começou a cantar a música Flor do Cafezal, sucesso de Inezita Barroso, e foi acompanhado por um coral improvisado. Já o analista de sistemas Lothar Bazanella declamou poesias. A experiência sonora e tátil prosseguiu com os cegos pisando sobre os grãos que secavam ao sol.

Na cafeteria do craque

Proprietário da Cafeteria Loreto, o jogador de futebol Danilo Silva serve os turistas - Daniel Nunes Gonçalves/UOL - Daniel Nunes Gonçalves/UOL
Proprietário da Cafeteria Loreto, o jogador de futebol Danilo Silva serve os turistas
Imagem: Daniel Nunes Gonçalves/UOL

Depois do almoço no centro de Espírito Santo do Pinhal, em que aprendi que pratos a la carte são sempre mais práticos para cegos que os bufês, a jornada terminou com uma visita à cafeteria Loreto, onde a turma pode tocar os grãos e o pó, ouvir a moagem e sentir o aroma da torra do café.

Na hora da degustação, mais cantoria e poesia. “É nossa primeira vez recebendo um grupo assim, especial, e estamos todos emocionados”, resumiu Danilo Silva, proprietário da casa e também jogador de futebol, atualmente no Dínamo de Kiev, na Ucrânia – e que passava férias no país.

A volta a São Paulo, no micro-ônibus, teve conversa e piadas como em qualquer viagem – com a diferença de que a guia Audmara e os voluntários seguiam narrando as cenas que se passavam nas janelas, fazendo-os aproveitar ainda mais a viagem.

Regressei com novos amigos e com a sensação de que minha experiência havia sido mais bonita e intensa, como se realmente estivesse enxergando melhor.