Topo

Líbano esconde castelo e lindas praias em zona marcada pela guerra

Marcel Vincenti

Colaboração para o UOL, de Tiro (Líbano)

27/11/2015 07h07

As guerras do Oriente Médio ofuscam (e quase relegam ao ostracismo) diversos dos atrativos turísticos do Líbano, um país sempre afetado pelas turbulências na região.

A cidade de Tiro, por exemplo, é mais conhecida por ser reduto do grupo político armado Hezbollah do que por abrigar ruínas romanas que remontam ao século 2 d.C. e que oferecem vista para o mar Mediterrâneo.

Qana, por sua vez, ganhou as manchetes pela chuva de bombas que tomou de Israel em 1996, ano em que os israelenses entraram em um sangrento conflito contra o Hezbollah. Nem todos sabem, porém, que muitos fiéis acreditam que na cidade ocorreu o episódio bíblico da transmutação da água em vinho realizada por Jesus Cristo. Um templo com lindos baixos relevos dedicado ao milagre e uma caverna onde Jesus teria dormido são pontos de peregrinação para libaneses cristãos no local.

Explorar os segredos da região é uma experiência que oferece doses consideráveis de risco -- e histórias de viagens que, aos ouvidos de muita gente, ganham uma dimensão surreal. Na estrada, o encontro entre a beleza e a tensão bélica que existem no Líbano é constante (e marcante). 

Xiitas e romanos

Quando bate na orla de Tiro, o mar Mediterrâneo ganha uma linda cor azul turquesa, e é aproveitado por banhistas desde as areias da Reserva Natural Costeira de Tiro, uma área de preservação ambiental de 380 hectares perfeita para o nado e onde, ocasionalmente, visitantes conseguem ver tartarugas-marinhas. Homens descamisados e calção de banho. Mulheres, via de regra, sob pesados véus negros. Quase todos muçulmanos xiitas. 

Tiro foi um dos principais portos do Mediterrâneo na era pré-cristã, principalmente sob o comando dos fenícios. São das épocas romana e bizantina, porém, seus principais monumentos históricos. As colunas quebradas, mas ainda imponentes, do sítio arqueológico de Al-Mina aparecem ao lado do mar da cidade, fazendo sombra sobre uma via de 170 metros de comprimento coberta por mosaicos que conduz o visitante para dentro desse ambiente de quase 2.000 anos.

Construída durante a dominação romana na região, Al-Mina ainda exibe as ruínas de uma arena que comportava até 2.000 pessoas, e onde, acredita-se, eram realizadas sangrentas lutas parecidas com o boxe. 

O local hoje está em ruínas, mas as brigas, em Tiro, continuam vivas (principalmente no aspecto ideológico). Na orla da cidade, é comum ver bandeiras e fotos de soldados mortos do Hezbollah. Quando a reportagem esteve por lá, uma equipe de cinco pessoas do Al-Manar, o canal de televisão do Hezbollah, gravavam um clipe, com drone e crianças dançarinas, de uma banda de música da região. As letras comemoravam as supostas vitórias do grupo xiita em seus confrontos contra Israel.

O Estado Islâmico, porém, parece ser hoje uma preocupação maior para o Hezbollah. Membro da organização, diretor do Al-Manar e presente na gravação do clipe, Belal Sater me mostrou orgulhosamente seu celular, com uma foto de seu filho: "ele tem 18 anos e eu o enviei para a Síria para lutar contra o EI. Ele está ajudando a defender o Bashar al-Assad [aliado do Hezbollah]", disse, com um sorriso mais radiante do que o sol que ilumina as praias de Tiro. 

Perto da fronteira, só com autorização

Ao sul de Tiro, fica o último trecho de terra antes da fronteira israelense: trata-se de uma faixa terrestre de 40 quilômetros de comprimento praticamente proibida para turistas. Para visitar boa parte desta área, é preciso ir até a cidade de Sidon, entrar em uma base do Exército libanês e implorar para que o oficial de plantão (geralmente um burocrata sem muita vontade de trabalhar) lhe dê uma autorização, nem sempre concedida. 

O motivo para o empecilho: um grande naco do sul do Líbano está hoje sob o controle da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil), que tem na região um contingente de cerca de 9.000 soldados de 38 países cujo principal objetivo é prevenir que novas guerras ocorram entre Israel e grupos armados libaneses. Para ingressar no terreno de atuação da Unifil, só com a tal da permissão.

O motivo para ir até lá: esta área do sul do Líbano abriga a cidade de Naqoura, onde está uma das praias mais lindas do país, cercada por natureza verdejante e água cristalina. É uma orla, porém, que fica em uma das fronteiras mais tensas do mundo. 

Apesar da presença dos capacetes azuis, muitos libaneses do sul do Líbano parecem esperar a volta da guerra a qualquer momento. Ao me ver caminhando nas ruas de Qana, Ali, um jovem xiita de 28 anos, me chama para tomar expresso em sua loja que vende café brasileiro. Gentil, ele fala de futebol, pergunta sobre minha profissão e deseja que Alá abençoe minha família. É só a palavra Israel aparecer na conversa, porém, que tudo muda: ele se levanta, tira uma pistola 9 milímetros de uma gaveta e, com um ar sério, diz: "estou pronto para lutar se eles nos invadirem de novo". Na nossa despedida, me dá um grande abraço. 

Qana é o lugar onde Jesus teria transformado água em vinho - e transmutações radicais continuam a ocorrer na cidade.

Castelo cruzado

Mais ao norte de Qana, o espectro da guerra continua a acompanhar o turista que gosta de monumentos históricos. Na região centro-sul do Líbano fica o castelo Beaufort, uma fortaleza cruzada situada sobre uma colina de 700 metros de altura que, apesar de remeter à Idade Média, continuou com função militar até o final do século 20, quando foi usada como posto de ataque e defesa do Exército israelense durante sua ocupação do sul libanês, que durou até o ano de 2000. 

Hoje é possível subir no castelo (para ir até lá não é preciso autorização do Exército libanês) e, de lá, ter vista da cidade libanesa de Arnun e das colinas de Golã, com seus lindos corpos rochosos ondulantes que clamam por uma foto. Mas não leva muito tempo para perceber que, atrás das colinas, há outra realidade trágica: o território sírio.

Zona laranja

A reportagem percorreu o sul do Líbano e, em nenhum momento, se sentiu ameaçada. Mas, hoje, diversos governos do mundo não recomendam viagens a partes da área. Como é possível ver no mapa, o governo britânico coloca toda a região de Tiro (Tyre) em uma zona laranja, que significa "vá até lá apenas se a jornada for essencial". A região onde se situa o castelo de Beaufort, por sua vez, que fica perto de Nabatiye, está na zona verde: relativamente estável, "mas entre em contato conosco antes de ir para ver se está tudo seguro". 

Se quiser um dia visitar a região, nosso conselho é o mesmo: informe-se sobre a situação de segurança com a embaixada brasileira no Líbano, altamente atuante no país árabe e que pode dar informações confiáveis para a viagem.