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Hoje destruída, Síria fascinava viajantes com história e hospitalidade

Marcel Vincenti

Colaboração para o UOL, do Cairo (Egito)

26/10/2015 06h00

Visitei a Síria acidentalmente em fevereiro de 2009. Durante uma viagem pela vizinha Jordânia, conheci um argentino que havia acabado de chegar de Damasco: "você tem que ir pra lá! É um país incrível", me aconselhou ele. 

Eu não tinha o visto sírio, e muitos guias de viagem diziam que era difícil conseguir o carimbo (o país dos Assad não interagia muito com o mundo naquele momento). "Não importa", falou meu amigo sul-americano. "Vai até a fronteira e tenta a sorte".

Coloquei minha camisa do Brasil e encarei uma viagem por terra de três horas até o posto fronteiriço de Deraa, cidade que é a porta de entrada da Síria para quem vem da Jordânia.

Cercado por ameaçadoras fotos da família Assad envergando uniformes militares, em imagens que deixavam claro quem mandava a partir dali, o agente de imigração foi rude: "por que você não tem o visto? Não vai poder entrar". "Mas eu vim do Brasil especialmente para visitar a Síria. E meu país é longe, viu?", retruquei. 

A retórica funcionou: ele olhou para minha camisa, deu um leve sorriso e disse: "está bem. Pague 28 dólares pelo visto e pode entrar". Missão cumprida: o Brasil abre portas no Oriente Médio. 

Templos e destroços

Deraa foi o início da minha viagem pela Síria e, por coincidência, também foi o local do início dos conflitos que iriam destruir o país a partir de 2011. Foi lá que o regime de Bashar al-Assad torturou um grupo de adolescentes que, inspirados pela Primavera Árabe, haviam pichado um muro com palavras de ordem contra o governo. O caso gerou revoltas populares na cidade e motivou outros protestos pelo país, que seriam o estopim da guerra que vemos hoje.

Oração na Mesquita Omíada, em Damasco, um dos principais templos do islã - Marcel Vincenti/UOL - Marcel Vincenti/UOL
Fev.2009 - Oração na Mesquita Omíada, templo histórico do islã (e ainda de pé)
Imagem: Marcel Vincenti/UOL
Antes da conflagração, porém, a Síria era, para os turistas, um lugar onde a hospitalidade do povo e a riqueza da história se sobrepunham à presença de um governo carrancudo e repressivo.

Chegar a Damasco era (e ainda é) como descer de um DeLorean em uma esquina da história humana: no centro da cidade, em um mesmo campo de visão, o forasteiro pode admirar o Templo de Júpiter (levantado pelo Império Romano), a mesquita Omíada (inaugurada no século 7 d.C.), o túmulo de Saladino (o guerreiro que tomou Jerusalém dos cruzados em 1187) e o bazar Al-Hamidiyah, onde negociantes vendem seus tecidos e especiarias há séculos (e tudo ainda preservado da guerra).

O que não aparecia na paisagem eram turistas: classificada pelos Estados Unidos como "Estado patrocinador do terrorismo", a Síria, já naquela época, assustava forasteiros. Uma imagem monstruosa e parcialmente equivocada: o país, até 2011, era um dos lugares mais hospitaleiros com estrangeiros no mundo.

Caminhar pela Síria era ser convidado diariamente para fumar narguilé em algum café e até comer no lar de estranhos. Dentro da Grande Mesquita de Aleppo, um homem com dois filhos pequenos me chamou para jantar na sua casa, dizendo gentilmente, em um ótimo inglês: "minha esposa faz o melhor húmus da cidade".

Tinha que ir para Palmira naquele mesmo dia e não pude aceitar, e ainda me pergunto o que terá acontecido com aquela família na hoje barbarizada Aleppo (a foto dos dois garotos pode ser vista abaixo).

Crianças posam para foto dentro da mesquita de Aleppo, hoje destruída (18/02/2009) - Marcel Vincenti/UOL - Marcel Vincenti/UOL
09.fev.2009 - Amigáveis crianças sírias de Aleppo: o que terá acontecido com elas?
Imagem: Marcel Vincenti/UOL

A Grande Mesquita, uma obra arquitetônica magnífica que remonta ao século 8 d.C., não sobreviveu: em 2013, o governo de Bashar al-Assad, na caça a grupos rebeldes, bombardeou o templo. O bazar de Aleppo, outro cartão-postal local e um dos mercados mais antigos do mundo, também teve sua estrutura cavernosa e suas lojas de especiarias destruídas no conflito.

Palmira e as monjas sequestradas

Palmira, o sítio arqueológico que vem sendo destruído pelo Estado Islâmico, era, em 2009, um playground para amantes de história quase esquecido no meio do deserto. 

Cheguei a Palmira à noite e, após o check-in em uma pousada confortável e barata (pagava-se cerca de 30 reais em uma diária na Síria na época), andei os poucos quilômetros que separam o centro da cidade do sítio arqueológico. Não havia ninguém na área entre as colunas romanas e o templo dedicado ao deus mesopotâmico Bel (associado à lua), símbolos do lugar. 

Todo o sítio se encontrava iluminado e fiz um longo passeio solitário dentro do lindo anfiteatro onde, em julho deste ano, o Estado Islâmico atiraria na cabeça de mais de 20 soldados do Exército sírio para uma rede mundial de espectadores. No alto de uma montanha, aparecia o Qala'at ibn Mann, um castelo do século 16 que montava um "background" perfeito para o templo do deus Baalshamin (associado às chuvas), uma construção de quase 2.000 anos que foi dinamitada pelo EI no mês de agosto.

Membros do EI executam pelo menos 25 soldados sírios no anfiteatro de Palmira - Reprodução/Welayat Homs - Reprodução/Welayat Homs
Jul.2015 - Anfiteatro de Palmira: de atração turística a palco de execuções
Imagem: Reprodução/Welayat Homs

Nos arredores de Palmira, humildes beduínos, com esposas com a cara tatuada, chamavam os parcos forasteiros para tomar chá em suas casinhas no deserto. Não raro, haxixe era também oferecido.

A tomada da área pelo Estado Islâmico gerou centenas de mortos, com diversas pessoas sendo executadas publicamente por simplesmente não estar de acordo com a ideologia do EI.

E a 220 quilômetros dali, na cidade de Maalula, a guerra chegou bem antes: conhecida por ser um dos poucos lugares do mundo onde ainda se fala aramaico (a língua que, acredita-se, falava Jesus), Maalula é um enclave cristão no meio da Síria e atraía turistas com seus mosteiros encravados em lindas montanhas.

Era tradição: o viajante ia a Maalula e buscava imediatamente o mosteiro de Santa Tecla para pedir hospedagem às freiras que moravam ali.

Terraço do mosteiro de Santa Tecla, em Maalula (19/02/2009) - Marcel Vincenti/UOL - Marcel Vincenti/UOL
13.fev.2009 - O mosteiro de Santa Tecla, em Maalula, acolhia turistas gratuitamente
Imagem: Marcel Vincenti/UOL

Confortáveis quartos eram dados gratuitamente aos viajantes, que ainda podiam ouvir histórias de como Santa Tecla, enquanto fugia dos romanos por haver se convertido ao cristianismo, havia recebido a ajuda de Deus para abrir uma enorme fenda que ainda existe em uma montanha vizinha, para facilitar sua rota de fuga. 

Em 2013, as 12 freiras do mosteiro foram sequestradas pelo grupo islâmico Frente al-Nusra quando este tomou Maalula. Ficaram em cativeiro por três meses, mas foram libertadas no começo de 2014. 

Antes um berço de hospitalidade, a Síria é hoje um lugar proibido, tanto para turistas como para muitos de seus nativos. E a guerra não poupou quase ninguém: milhões de sírios pobres e de classe média (e alguns ricos) correm para lugares como Líbano, Turquia e Europa na tentativa desesperada de fugir de um país que costumava fascinar viajantes do mundo inteiro.