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No meio do lago Titicaca, ilha oferece isolamento, arte e belas paisagens

MARCEL VINCENTI

Colaboração para o UOL, do Peru

22/02/2011 19h29

Juan Quispe Huatta é um homem que, na maioria das cidades do mundo, atrairia enorme atenção das pessoas. Sentado no barco que acaba de deixar o porto de Puno, no Peru, e cruza vagarosamente as águas do lago Titicaca, ele é uma das imagens mais originais da extensa paisagem andina. O rosto moreno e risonho, de olhos puxados e avessos ao contato ocular, realça a roupa luminosa que seu corpo, de dimensões diminutas, orgulhosamente enverga.

  • Marcel Vincenti/UOL

    Além de um belo terreno montanhoso, a ilha de Taquile, no Peru, exibe praias banhadas pelo lago Titicaca


A vestimenta prima pela elegância: camisa alva com mangas bufantes, colete negro, calça negra adornada por um cinturão de lã vermelho (sobre o qual se destacam figuras indígenas coloridas) e um imponente chullo vermelho, com pompom multicolor na ponta, pendendo da cabeça.

Juan não se dirige a nenhum compromisso especial: está, simplesmente, voltando para casa. E o que ele chama de ‘lar’ é um lugar quase invisível no mapa-mundi: a ilha de Taquile, localizada no meio do lago Titicaca, a 3.800 metros sobre o nível do mar.

Enquanto o destino não chega (tempo estimado: quase quatro horas de viagem) ele conversa animadamente com um grupo de amigos, vestidos de maneira igualmente chamativa: as palavras saem em quíchua (idioma dos incas até hoje falado em Taquile) carregadas pelo aroma adocicado da folha da coca, que todos mastigam diária e vorazmente.

No chão, produtos de primeira necessidade comprados em Puno: sacos de arroz, botijoes de gás, algumas frutas, ovos. Enfim, tudo o que a ilha, apesar de fértil, não produz.

Os taquilenhos são, à primeira vista, gente de sorte. Vivem cercados por um dos mais belos cenários do continente, tem uma religião conectada à natureza e souberam transformar seu isolamento em arte: em nenhum lugar da região se vê comunidade tão criativa e colorida.

As mais de 500 famílias que habitam a pequena ilha (cujo terreno montanhoso tem apenas 1,6 km de largura por 5,8 km de comprimento) alimentam-se, principalmente, do que o solo insular lhes dá: milho, batata, vagem, quínoa (cereal andino riquíssimo em vitaminas). Apesar de cristãos, louvam fervorosamente Pachamama, a Mãe Terra. E, embora ungidos cidadãos peruanos, seguem leis próprias: não há um só soldado da polícia em Taquile e quando alguém comete um delito (Juan afirma que não há um crime na ilha há mais de 20 anos) a punição é açoitamento em praça pública.

Tradição artística

O clima em Taquile, entretanto, é de perfeita harmonia. Com um caráter indiscutivelmente buena onda (que se opõe ao jeito rude de outros povos andinos), os nativos estão mais preocupados em tecer e usar suas belas vestimentas que infligir sofrimento a criminosos. E não se trata apenas de vaidade, mas de imagem social: o taquilenho que não sabe tecer é chamado por seus conterrâneos de muruqu maki - expressão quíchua que, traduzida literalmente, quer dizer ‘mão redonda’, mas significa, acima de tudo, ‘pessoa inútil’.

São, afinal de contas, os intricados bordados feitos na ilha que mantém a sociedade taquilenha coesa. Os nativos aprender a fazer chullos (gorros de lã), t´isnus (cintas também de lã) e fajas (cinturões com complexos desenhos) desde seus cinco anos de idade. E, a partir das figuras que imprimem nos tecidos, tomam contato com a simbologia que rege a mística local.

O k´eche, pássaro que aparece frequentemente nas fajas, por exemplo, pode ter significado dúbio: se ele surge no horizonte no momento em que alguém estiver plantando algum alimento, é sinal de que a colheita será péssima. Mas quando o escutam emitindo sons, é sinal de que a chuva está próxima. ‘Aqueles que não sabem tecer são mal vistos pela comunidade e têm dificuldades até para se casar’, diz Juan. ‘São com os tecidos que a comunidade aprende nossa cultura e é necessário que todos dominem a arte.’

A exemplo de Juan, grande parte dos taquilenhos exibe o produto de seu esforço: no dia a dia, seja para comparecer a uma festa familiar, seja para tosar ovelhas, os nativos não abrem mão de suas vestes coloridas, que, além de os embelezar, comunicam sua idade, estado civil, status social e até estado de espírito: as mulheres casadas, por exemplo, usam, geralmente, camisas vermelhas e volumosas saias (as famosas polleras). Quase sempre andam cobertas por um manto negro.

Já os líderes comunitários - responsáveis por resolver conflitos internos e fazer cumprir as tradições locais - exibem chullos coloridos cobertos por elegantes chapéus. Se um homem está feliz, coloca a ponta de seu chullo sobre o ombro direito. Se está tendo um mal dia, o adereço cai sobre o ombro esquerdo.
 

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    Além de um belo terreno montanhoso, a ilha de Taquile exibe praias banhadas pelo lago Titicaca

Sociedade festiva e mística

Na época do Carnaval, Taquile realiza um de seus principais eventos comunitários: é a festa da colheita, que celebra o bom resultado das plantações da ilha. Mas às vezes há fracassos, secas e, antes de pensar em rezar, os nativos pedem auxílio a um de seus líderes espirituais (chamados, em quíchua, de paq´os) que são, supostamente, dotados da capacidade de dialogar com a natureza.

Um dos sacerdotes taquilenhos é Victor Machaca, um velhinho surdo, de rosto enrugado e pele bronze, que, toda vez que há alguma ameaça de seca, sobe na Mulsina (a colina mais sagrada de Taquile) para fazer oferendas à Pachamama. No ritual, a clamar por chuva ou alguma outra bênção, usa folhas de coca, rãs, plantas e até fetos de lhama. É ele também quem faz os partos da comunidade.

A casa de Victor é mais pobre que a maioria das residências locais, mas preserva características encontradas em toda a ilha: as paredes são feitas com o marrom cru do tijolo de adobe e o teto, de zinco, brilha intensamente ao receber os raios solares.

Ajoelhado no chão de seu dilapidado quintal, o sol a refletir em sua face envelhecida, Victor lê a coca para um atento ouvinte. Tira um punhado de folhas de sua chuspa (bolsa usada para carregar a planta) e, com o punho semicerrado, à meia altura do solo, deixa-as cair, uma a uma, sobre um manto de lã estirado no chão. Balbucia palavras em quíchua, enquando analisa, na posicão e no formato de cada uma das folhas de coca, o futuro do consultante. A previsão é otimista: a pessoa terá saúde e ganhará algum dinheiro no ano.
 

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    A arquitetura de Taquile, no Peru, guarda muitas influências europeias

Êxodo?

Mas, em Taquile, ter qualidade de vida e ganhar dinheiro não é tão fácil. A ilha sofre com falta de água (ainda não consegue trabalhar com a reserva salina e poluída do Lago Titicaca), os pescadores reclamam que o mesmo lago não lhes abastece como antes e a quantidade de moeda em circulação é baixa.

Juan conta que, quando tinha 17 anos, cansou da austeridade da vida insular e fugiu de casa. Foi parar em Arequipa, a segunda maior cidade do Peru, com 800 mil habitantes e a 350 km de distância. Vestido a caráter, e perdido no meio do tráfico enlouquecido, foi chamado de ‘indio de mierda’ um par de vezes, após esbarrar em alguns transeuntes. Sua vestimenta, motivo de orgulho em Taquile, despertava desprezo no mundo urbano.

‘Aguentei duas semanas. Fui roubado enquanto dormia em uma praça e tive que trabalhar lavando pratos’, relata ele. ‘Voltei pra casa e fiquei feliz ao perceber que não havia semáforos em Taquile para controlar nossos movimentos. Aqui somos livres.’

A maioria dos nativos parece compartilhar a mesma opinião, dizendo que preferem a humilde paz do Titicaca ao caos ostensivo da cidade grande. E hoje, mais do que nunca, eles têm um bom motivo para permancer em sua terra: a ilha tem se consolidado, a cada temporada que passa, como um dos principais pontos turísticos da região.
  Turismo comunitário

Com o turismo, os taquilenhos provaram que realmente têm senso comunitário. Todas as manhãs, barcos recheados de forasteiros aportam em seu território, atraídos pelas paisagens e tecidos do lugar. As mais de 500 famílias locais se revezam, semanalmente, para cuidar do restaurante e do centro de artesanatos que, estrategicamente posicionados na praça central, matam a fome de comida e de consumo dos turistas.

Aqueles que optam por passar a noite na comunidade são acolhidos em casas de família, que também se alternam nas tarefas receptivas. E o tratamento dado aos hóspedes é realmente acolhedor.
 

Dicas

O melhor jeito de ir a Taquile é com a embarcação da própria comunidade, que sai do porto da cidade de Puno, todos os dias, às 8h. Na chegada à ilha, o visitante será recebido por alguns dos nativos, que oferecerão suas casas como opção de hospedagem.
É possível também visitar a ilha com uma das inúmeras agências turísticas de Puno. Mas, apesar de o passeio abranger outros interessantes lugares do lago Titicaca, como as ilhas flutuantes dos Uros, o visitante terá apenas poucas horas para estar em Taquile, insuficientes para se conhecer a rica cultura local.

Juan, um dos taquilenhos que transformou sua casa em pousada, calcula que 80% de sua renda venha atualmente do turismo. Mas reclama que, hoje, agências da cidade de Puno, que nada têm a ver com a realidade da ilha, estão prejudicando os seus negócios. ‘Eles trazem o turista por conta própria e, como seus pacotes incluem visitas a outros lugares, não os deixam dormir aqui. Nós temos nosso próprio barco, mas ainda não estamos em condição de competir com as agências da cidade.’

Apesar de organizada, Taquile tem ainda um longo caminho a percorrer antes de lucrar realmente com o turismo (hoje, uma família que tem sua pousada - e, oferece, no pacote, cama e pensão completa) consegue tirar, em média, 150 reais por mês. Dos 80 mil forasteiros que visitam a ilha anualmente, menos de 10% vem com a intenção de pernoitar (que é quando as famílias realmente ganham dinheiro com a visita).
Os nativos, porém, são tenazes. E isso fica claro quando o barco em que está Juan, após as quatro horas de viagem, atinge o porto da ilha. Para chegar às suas casas, os passageiros terão de encarar uma escada com mais de 530 degraus, que começa na beira do lago e termina no alto da montanha que delineia Taquile, onde se encontra grande parte das residências. Com a falta de ar causada pelos 3,8 mil metros de altura, e o excesso de peso dos enormes vultos que carregam nas costas, a subida, apesar de rotineira, não será fácil.

Os taquilenhos, deste ponto de vista, não são tão sortudos assim (‘aqui, os burros somos nós’, dizem, bem-humorados, ao justificar a ausência do animal de carga na ilha). Mas, por outro lado, eles têm a vantagem de viver em um um lugar que, além de abrigo, lhes dá inúmeras razões para viver em harmonia entre si.