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Na selva da Bolívia, turistas seguem os últimos passos de Che Guevara

  • Arte/UOL

    Caminhos percorridos pela guerrilha de Che Guevara na Bolívia entre 1966 e 1967

Marcel Vincenti

Do UOL, em La Higuera (Bolívia)

09/01/2014 07h20

Na manhã do dia 8 de outubro de 1967, o grupo guerrilheiro de Ernesto Che Guevara foi emboscado pelo Exército Boliviano nas profundezas da Quebrado del Yuro, um cânion localizado em um dos mais remotos rincões da América do Sul. Cercado pelos densos matagais do sudeste da Bolívia, e em uma posição altamente desfavorável para o combate, Che e seus seguidores foram açoitados por uma chuva de balas: uma delas feriu o argentino na panturrilha direita e outra inutilizou sua carabina M2.

Preso no local – e posteriormente executado no vilarejo de La Higuera, a dois quilômetros da Quebrada del Yuro – Guevara via acabar seu sonho de instalar um foco guerrilheiro no coração da América do Sul, que irradiasse uma revolução socialista por todo o subcontinente. As trilhas dessa empreitada, porém, podem ser seguidas por turistas que estejam dispostos a encarar longas jornadas estradeiras e cansativas caminhadas no meio do mato.

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Em 2007, o governo de Evo Morales estabeleceu na região da Quebrada del Yuro a chamada “Ruta del Che”, que permite que forasteiros sigam os últimos passos de Che Guevara com o apoio de guias turísticos. O roteiro passa pelos principais caminhos da desventura do herói da Revolução Cubana no território boliviano, como a lavanderia do hospital em que seu cadáver foi exposto, o local onde Guevara foi executado com oito tiros no peito e a vala comum na qual seus supostos ossos foram encontrados em 1997. Uma descida à Quebrada del Yuro e eventuais conversas com camponeses que testemunharam a prisão de Che também fazem parte do pacote.

Território-armadilha

A cidade de Vallegrande, localizada a seis horas de Santa Cruz de La Sierra, é a porta de entrada da “Rota do Che”. É lá que os turistas podem contratar o passeio – que dura dois dias e custa entre 200 e 450 bolivianos por pessoa (dependendo do tamanho do grupo) – e também conhecer alguns dos principais atrativos do roteiro.

Foi na lavanderia do hospital Señor de Malta, o único existente em Vallegrande (cidade hoje com cerca de 8.000 habitantes), que soldados e jornalistas tiraram as fotos que atestaram a derrota definitiva do plano guerrilheiro de Guevara para a América do Sul: o cadáver de Che estendido sobre uma pia, o peito crivado de balas, observado por satisfeitos militares bolivianos.

  • Marcel Vincenti/UOL

    Boliviano limpa a pia sobre a qual o corpo de Guevara foi exposto para curiosos em 1967

“Foi algo absolutamente sem sentido tentar gerar uma revolução na Bolívia”, afirma Gary Prado, o militar que comandou a captura de Guevara na Quebrada del Yuro. “Nosso país havia passado por uma revolução camponesa no começo dos anos 50 e René Barrientos [presidente boliviano em 1967] tinha o apreço dos bolivianos. Recrutar guerrilheiros entre a população local, algo feito com sucesso em Cuba, era impossível aqui. E mesmo que o plano de Che desse certo, as fronteiras da Bolívia, que não tem saída para o mar, logo seriam fechadas pelos países vizinhos, o que sufocaria a vitória da guerrilha”. (Veja aqui entrevista exclusiva que o UOL realizou com Gary Prado na Bolívia, em que o militar conta como foram os últimos momentos de Che Guevara).

O Señor de Malta é um hospital ativo e, para chegar à “lavanderia do Che”, o turista cruza com médicos de jaleco e indígenas enfermos esperando atendimento. A pia sobre a qual o corpo do guerrilheiro foi exposto é coberta por um casebre, cujas paredes encontram-se pichadas com milhares de mensagens de apoio ao guerrilheiro. “O Che vive em cada luta, em cada companheiro”, diz o escrito de uma viajante argentina. “Os povos do mundo seguem teu exemplo”, afirma a mensagem deixada por um venezuelano.

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    Mapa mostra pontos visitados durante a Rota do Che e a posição da Bolívia no continente

A poucos metros da lavanderia está a casinha em que médicos amputaram as duas mãos de Guevara, que serviram como prova da morte do guerrilheiro para o governo boliviano (e também para os Estados Unidos) e que, mergulhadas em formol, foram posteriormente “contrabandeadas” para Cuba, onde se encontram até hoje. O local, coberto de exortações socialistas, ainda serve como a sala de autópsias do Señor de Malta.

Vallegrande também abriga o que teria sido o túmulo de Che por 30 anos. Em 1997 foram descobertas, em uma vala comum ao lado da pista de pouso da cidade, as supostas ossadas de Guevara e de outros seis membros de sua guerrilha (após executar o argentino, o governo boliviano, preocupado em não criar um sítio de peregrinação, afirmou que seu o corpo havia sido cremado em um lugar sigiloso).

Os restos mortais que emergiram no local estão hoje em Cuba, mas, sobre a vala comum, foi erguido um edifício que traz diversas homenagens ao movimento aniquilado em outubro de 1967. Há lá desde fotos da infância de Guevara até os retratos de 37 de seus guerrilheiros que morreram nas selvas da Bolívia, como o boliviano Coco Peredo e a célebre argentina Haydée Tamara Bunke, codinome Tania, assassinada na emboscada de Vado del Yeso em 31 de agosto de 1967 -  e cujo local de enterro, localizado perto da fossa de Guevara, também é aberto a visitas.

Trilha na selva

Vallegrande, cidade fundada em 1612 e com belas construções coloniais, é o ponto inicial da Rota do Che, mas, para conhecer os locais pelos quais Guevara passou em vida, o visitante deve enfrentar quatro horas de estradas sinuosas e poeirentas e ir até o remoto vilarejo de La Higuera. Ali, o guerrilheiro argentino viveu seus últimos momentos.

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    Turistas descem trilha em direção à Quebrada del Yuro, o local da captura de Che Guevara

Cerca de dois quilômetros antes de chegar a La Higuera, o veículo que conduz os turistas pela Rota do Che para na frente de uma pequena porteira, atrás da qual aparecem casebres miseráveis construídos sobre um chão barrento. No local vive Florencio Aguilar, um camponês de 74 anos que recebe os visitantes com um grande sorriso. Cercado por crianças descalças e algumas galinhas, ele se apressa em exibir um revólver calibre 22, indústria argentina, que guarda no bolso. “Essa arma era da guerrilha do Che e eu a encontrei lá embaixo”, conta.

O “lá embaixo” em questão é a Quebrada del Yuro, o lugar da captura de Guevara e que Aguilar afirma estar dentro da sua propriedade. “Eu estava aqui quando o Exército o agarrou. Lembro de vê-lo surgir do mato ao lado dos soldados bolivianos, que o estavam levando até La Higuera [onde Che seria executado]. Ele era um homem grande, forte”.

É interessante notar que as lembranças de Aguilar contrastam fortemente com o relato do militar Gary Prado, que afirma que Che parecia um “mendigo”, de tão sujo e esquálido, quando o Exército boliviano o capturou.

Atrás da casa em que vive Aguilar começa a íngreme descida para a Quebrada del Yuro. O clima é extremamente úmido, o horizonte se encontra cercado pelas montanhas do sudeste boliviano e, do solo, crescem espinhosas plantas que machucam os braços e pernas dos caminhantes. Acidentado, o terreno se altera constantemente: ora se mostra coberto por vegetação rasteira, ora por frondosas árvores.

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    Camponês exibe revólver que teria pertencido à guerrilha comandada por Che na Bolívia

No trajeto, é possível conhecer o ambiente que abrigou (e, de certa forma, ajudou a destruir) a guerrilha de Che entre o final de 1966 e outubro de 1967. Nos últimos relatos de seu famoso diário, escritos na época em que a guerrilha cruzava esta área, Guevara reclama do sofrimento causado pela falta de água, da dificuldade de encontrar comida (o que o obrigava a sacrificar e comer os cavalos que o conduzia pela selva, sempre com negativas consequências digestivas) e de guerrilheiros reclamando de “feridas supuradas” – dificuldades que eram exacerbadas pelos violentos ataques de asma que enfraqueciam o argentino e pela aversão que os camponeses tinham pelo movimento guerrilheiro.

“Estou com um ataque ao fígado, vomitando, e a gente está muito esgotada por caminhadas que não rendem nada. Matamos um porco vendido pelo único camponês que ficou na sua casa. O resto deles fugiu ao nos ver”, escreve Che em 24 de setembro de 1967, duas semanas antes de sua morte.

Relatos parecidos aparecem em outras páginas do diário: “Estamos em um momento de baixa moral e de nossa lenda revolucionária”, afirma ele no final do mês de agosto. “A massa camponesa não nos ajuda e se convertem (sic) em delatores”, conclui ao término de setembro, mês em que também faz a seguinte anotação: “Hoje [10 de setembro], depois de mais de seis meses, tomei um banho. Constitui um recorde que vários de nós estão alcançando”.   

Um forte otimismo, porém, ainda surgia ocasionalmente nesta fase final da guerrilha: “Este tipo de luta nos dá a oportunidade de nos converter em revolucionários, o escalão mais alto da espécie humana”, escreve Che em 9 de agosto de 1967.

Ao chegar ao fundo da quebrada, o visitante facilmente identifica os marcos da última batalha da campanha guevarista: a rocha atrás da qual Che se protegeu dos tiros do Exército segundos antes de ser preso está pintada com uma enorme estrela vermelha. Já a pedra sobre a qual os militares liderados por Gary Prado imobilizaram o guerrilheiro leva a inscrição “Pátria ou Morte!”.

Calvário

Do fundo da Quebrada del Yuro, o visitante começa a subida de dois quilômetros rumo ao vilarejo de La Higuera, realizando um caminho parecido com aquele que Che Guevara, ferido e aprisionado, fez na manhã de 8 de outubro de 1967. O trajeto chega a ter 2.000 metros de altitude, atravessa densa vegetação repleta de mosquitos e faz o caminhante suar em bicas.

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    Na Bolívia, estrela vermelha marca a rocha que teria protegido Che em seu último combate

Ao ingressar em La Higuera, um vilarejo remoto e isolado que hoje abriga 25 famílias, o forasteiro é envolvido por uma miríade de imagens de Guevara. São paredes grafitadas com frases do revolucionário, pousadas cobertas com seu retrato e até um busto gigante do argentino que enfeita a pracinha local.

As homenagens abrem caminho para o lugar onde ficava a miserável escola de La Higuera que, em 1967, era nada mais uma pequena e deprimente construção de barro e palha. Foi aqui que o Exército aprisionou Guevara até o começo da tarde do dia 9 de outubro, quando, desde La Paz, chegou a ordem do presidente René Barrientos para que o guerrilheiro fosse executado.

Sob a supervisão de oficiais bolivianos e do agente da CIA Félix Rodriguez, o então sargento Mário Terán entrou na escolinha e disparou oito tiros contra o peito de Guevara. O edifício, hoje reformado e transformado em museu, abriga mensagens e objetos pessoais de viajantes do mundo inteiro: há cartas escritas por um “Batalhão 51” da Venezuela, um desenho do símbolo do Partido Comunista colombiano, mensagens em árabe pintadas sobre uma bandeira da Argélia e uma placa de metal deixada pela Federação dos Trabalhadores Camponeses de Cochabamba.

O que mais impressiona, porém, são as dezenas de cédulas de identidade, de cidadãos dos mais diversos países do mundo, coladas nas paredes da antiga escola. Os documentos revelam tudo: nomes completos, endereços domiciliares, cor dos olhos. O corpo de Che sumiu por 30 anos a partir de 1967, mas seu santuário já estava criado.

SERVIÇO

Ponto inicial da Rota do Che, Vallegrande fica a cerca de seis horas de Santa Cruz de la Sierra, a cidade que é a principal porta de entrada para os brasileiros na Bolívia. Ônibus saem várias vezes ao dia da Plaza Oruro, perto do centro de Santa Cruz, com destino a Vallegrande. A passagem custa entre 50 e 90 bolivianos (aproximadamente entre 17 e 30 reais).

Ao chegar a Vallegrande, o turista deve buscar o Centro de Informações Turísticas (esquina da praça central com a rua Sucre) e ali negociar o preço do tour, que custa cerca de 450 bolivianos (R$ 155) para uma pessoa sozinha ou 250 bolivianos (R$ 85) por pessoa para um grupo com três ou quatro viajantes. O preço inclui visita a pé ao hospital Señor de Malta e ao túmulo dos guerrilheiros, viagem de carro até La Higuera e a trilha pela Quebrada del Yuro. Há diversas opções de hospedagem em Vallegrande, com diárias a partir de 60 bolivianos (aproximadamente R$ 25).

Outra opção é tomar um táxi em Vallegrande e ir até La Higuera. A viagem custa 300 bolivianos (R$ 105) e, no povoado em que Che Guevara foi morto, há hoje diversas opções de hospedagem econômica, com diárias a partir de 30 bolivianos (R$ 12). Porém, é aconselhável que a trilha pela Quebrada de Yuro seja feita com um guia.

Para os mais aventureiros, o Centro de Informações Turísticas tem um tour que também abrange locais mais longínquos relacionados à aventura guevarista, como a região do rio Ñancahuazú (onde, em 1966, a guerrilha estabeleceu sua primeira base), o local de travessia do Rio Grande conhecido como Vado del Yeso (em que Tania e outros guerrilheiros foram mortos pelo Exército boliviano) e o povoado de Alto Seco, no qual, em 22 de setembro de de 1967, Che tentou recrutar camponeses para seu exército – sem sucesso.     

Para mais informações, entre em contato com os guias do centro de informações de Vallegrande:

Gonzalo Flores
Celular: 731 86354
E-mail: soyita@hotmail.com

Abalid Balderrama
Celular: 687 76350 

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