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Rota por Cartagena das Índias atravessa apuros e memórias de García Márquez

Adriana Terra

Do UOL, em Cartagena das Índias (Colômbia)*

15/05/2015 23h15

Foi em um fim de tarde de 1948 que Gabriel García Márquez (1927-2014), então um estudante de direito de 21 anos vindo de Bogotá, chegou a Cartagena das Índias, no Caribe colombiano. A sensação ao atravessar a passagem sob a Torre del Reloj, caminhar pelo largo pátio amuralhado e pelo portal ocupado por escrivães naquele entardecer foi descrita por ele como um “nascer de novo”, um despertar diante de uma cidade rica de histórias.

Torre del Reloj, Cartagena das Índias, Colômbia - Divulgação/Procolombia - Divulgação/Procolombia
Imagem: Divulgação/Procolombia

Nascido em Aracataca, cidadezinha a 258 km dali, Gabo (como o escritor era chamado) usou sua experiência no destino costeiro, desde o trabalho no jornal “El Universal” às pessoas e aos lugares que conheceu, como referência para obras escritas nos anos seguintes.

Embora Cartagena das Índias não seja citada diretamente em seus livros, nas entrelinhas sua presença é imponente. “Gabo dizia que em todos seus livros há fiapos de Cartagena. Seja por meio de um personagem, um lugar ou uma situação”, conta Iliana Restrepo, supervisora do roteiro, criado há cerca de três anos, que busca desvendar a cidade do imaginário garcia-marquiano.

Para definir o percurso, explica ela, “procurou-se identificar as casas e os lugares que ele descreve, mas que muitas vezes não foram explicitamente mencionados. A ideia é que a vida e a obra de Gabo sejam o fio condutor para contar a história de Cartagena, como se os visitantes conhecessem a cidade tendo ele como seu guia". 

Roteiro Cartagena de García Marquez - Sebo Torre del Reloj passagem - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Sebo vende livros sob a Torre del Reloj
Imagem: Adriana Terra/UOL

Apesar do encantamento inicial registrado pelo escritor em sua autobiografia, Cartagena estava em ruínas na época de sua chegada, conta Iliana. A cidade havia sobrevivido a guerras pós-independência, ataques piratas e a quase 300 anos de uma colonização que implicou em mortes e inquisição. O roteiro é, dessa forma, interessante não só por ser uma maneira de conhecer lugares marcantes para o autor, mas por ajudar a entender as origens e os rumos deste que é, hoje, o segundo principal destino turístico colombiano.

Com ajuda da pesquisadora, destacamos abaixo alguns dos pontos mais interessantes do percurso e sua relação com a obra e a vida do autor.

O pátio, a praça e a noite turbulenta
A rota guiada dura cerca de três horas e contempla boa parte do centro histórico. A Plaza de los Coches e o Portal de los Dulces (ou de los Escribanos), atravessados pelo autor ao chegar em Cartagena, são identificados em “O Amor nos Tempos do Cólera” e “Do Amor e Outros Demônios”, as duas obras de Gabo que mais carregam referências ao destino. 

Roteiro Cartagena de García Marquez - Portal de los Dulces  - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Aproveite para provar cocadas de diferentes tipos no Portal de los Dulces
Imagem: Adriana Terra/UOL

Nesta noite inicial, sem dinheiro para pagar um hotel, o escritor descansou em um banco do parque Bolívar, hoje ponto de encontro de senhores aposentados, pregadores religiosos e turistas que abrem seus grandes mapas enquanto comem uma arepa.

O sono, no entanto, não foi tranquilo. Durou até que policiais o prendessem, já que na época havia toque de recolher. Gabo foi levado então ao prédio que hoje abriga o charmoso Hotel Charleston - na época um cárcere e, em tempos anteriores ao ocorrido, o convento Santa Teresa.

Se houver tempo, vale aproveitar a passagem por estes locais para comprar um dos muitos tipos de cocadas do portal, dar uma olhadinha nos livros vendidos em um sebo que fica sob a Torre del Reloj e tomar uma saborosa limonada de coco no bar do Charleston.

Roteiro Cartagena de García Marquez - Hotel Charleston  - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
O charmoso Hotel Charleston já foi prisão e também já abrigou um convento
Imagem: Adriana Terra/UOL

De convento a hotel cinco estrelas
O passeio segue por um monastério ainda mais emblemático na obra do colombiano: o Santa Clara, também transformado em hotel, com diárias na casa dos mil reais. Teria sido ali que o jovem Gabo repórter testemunhou, em 1949, a desocupação de tumbas, entre elas a da menina de longos cabelos cor de cobre, história contada por ele no prólogo de “Do Amor e Outros Demônios”, para explicar a origem da personagem Sierva María de Todos Los Ángeles.

Estudiosos da obra do autor, porém, dizem ser impossível ter ocorrido o fato no ano em questão e que, provavelmente, o autor sobrepôs eventos ao escrever o texto.

Roteiro Cartagena de García Marquez - Hotel convento Santa Clara - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
O convento Santa Clara, transformado em luxuoso hotel
Imagem: Adriana Terra/UOL

De toda forma, a história contada é a que fica e o local tem como principal atração a cripta em questão, além de conservar a capela destes tempos, atualmente palco de casamentos. 

A Cartagena de Florentino e Fermina
Outros lugares religiosos do percurso incluem a Catedral Santa Catalina de Alejandría, onde Florentino Ariza entrega a primeira carta de amor a Fermina Daza em "O Amor nos Tempos do Cólera", e o Templo Santo Domingo, cuja lenda da torre entortada pelo diabo foi imortalizada por Gabo em sua biografia.

Roteiro Cartagena de García Marquez - Catedral Santa Catalina de Alejandría - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Catedral Santa Catalina de Alejandría, presente em "O Amor nos Tempos do Cólera"
Imagem: Adriana Terra/UOL

Já a Plaza Fernandez de Madrid é mais um ponto importante do romance de Florentino e Fermina. Ali seria a Plaza de Los Evangelios da ficção, onde ele a observava em seu caminho para casa.

A casa do Marquês de Valdehoyos
Uma das coisas mais legais do roteiro em homenagem ao Nobel da literatura é reparar na transformação dos lugares e na relação deles com o passado. O jornalista colombiano Gustavo Arango, autor de um livro sobre a carreira de Gabo no “El Universal”, diz que as residências de Cartagena parecem ter vida própria, mudando de utilidade sem que ninguém se surpreenda, como em um estranho e mágico destino.

Roteiro Cartagena de García Marquez - casa de Marquês de Valdehoyos - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Casa do Marquês de Valdehoyos é citada na obra de García Márquez
Imagem: Adriana Terra/UOL

Um caso exemplar é a casa que foi, originalmente, lar do importador de farinha e de escravos Marquês de Valdehoyos. O local abrigou depois o libertador venezuelano Simón Bolívar (evento narrado em “O General em seu Labirinto”, única obra de Gabo na qual a referência à Cartagena é explícita), o Ministério de Relacões Exteriores, mais pra frente abriu espaço para um restaurante e, hoje, sedia eventos culturais. O sobrado de paredes em cor terracota fica na Calle La Factoria e é citado pelo escritor como a “casa del Marqués de Casalduero”. 

Roteiro Cartagena de García Marquez - casa de Obregón - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Casa do artista Obregón, amigo de Gabo
Imagem: Adriana Terra/UOL

O lar festeiro de Obregón 

Na mesma rua da casa de Valdehoyos está a residência do artista espanhol Alejandro Obregón (1920-1992), amigo do autor. O tour segue pelo entorno desta construção térrea branca de janelas azuis que, há quatro décadas, era cenário de muitas festas.

Uma delas, inclusive, virou uma crônica na qual Gabo narra o Ano-Novo de 1979. Após a disputa de duas mulheres por uma obra de Obregón, o artista se irritou e atirou no olho da pintura, retrato de um almirante. “Esse quadro está ficando mais importante que eu, de modo que vou matá-lo”, teria dito.

A crônica é de 1991 e o quadro “baleado” foi dado ao escritor como presente. 

Roteiro Cartagena de García Marquez - casa Gabo - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Casa onde viveu García Márquez
Imagem: Adriana Terra/UOL

A casa modernista de Gabo

Um dos últimos e mais jovens pontos do percurso é a casa do autor, construída na década de 1990 pelo arquiteto Rogelio Salmona. Paralela às icônicas muralhas cartageneras, ela tem muros altos e amplos pátios internos. Foi projetada com a ideia de que o mar caribenho pudesse ser visto de seu interior.

Após a morte do autor, a irmã dele é quem vive ali.

Por fim, um bar caribenho
Para encerrar a caminhada, uma dica é o Bazurto Social Club. Oficialmente ele não está no roteiro, mas é um lugar bem simpático de se conhecer. García Márquez costumava frequentar este bar de decoração e letreiros coloridos em suas temporadas em Cartagena. O nome faz referência ao popular mercado de comida local. 

O Bazurto (bazurtosocialclub.com) fica no boêmio bairro de Getsemaní, ainda no centro da cidade, mas fora da região amuralhada. Além das comidinhas e dos drinques, durante as noites recebe DJs que tocam ritmos afrocolombianos. 

Roteiro Cartagena de García Marquez - Bazurto Social Club - Divulgação - Divulgação
Bazurto, bar que García Márquez costumava frequentar
Imagem: Divulgação

Aos interessados em se aprofundar na rota de um dos mais importantes autores latinoamericanos, vale esticar o passeio por locais como a sede do periódico El Universal (Pie del Cerro, calle 30, 17-36) e a Universidad de Cartagena (av. del Consulado, calle 30, 48-152), onde Gabo estudou. Além de conhecer, é claro, Aracataca (sempre comparada com a Macondo de “Cem Anos de Solidão”), Barranquilla, onde o escritor também viveu e trabalhou, e Bogotá, onde publicou suas primeiras histórias.

Serviço
A agência Tierra Magna (www.tierramagna.com) faz o tour, que em setembro de 2014 custava cerca de R$ 54.

*A jornalista viajou com o apoio da ProExport e da TAM Viagens.