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Em Miami, bairro cubano tem vida capitalista e oposição a Fidel

Marcel Vincenti

Do UOL, em Miami (EUA)*

02/12/2013 07h29

Cerca de 300 quilômetros separam Cuba do bairro de Little Havana, no centro de Miami, nos Estados Unidos. Apesar das feições e do castelhano carregado serem os mesmos em ambos os lados do estreito da Flórida, poucas coisas aproximam as paisagens das duas localidades.

Na ilha, apesar de sua abertura gradativa, ainda imperam murais da revolução, edifícios centenários e o governo socialista dos irmãos Castro. Em Little Havana, são os logos da Coca-Cola (e pinturas da cantora Celia Cruz ao lado Abraham Lincoln) que dão o colorido para um comércio movimentado, que inclui fábricas de charutos, restaurantes, lojas de roupas e shoppings de eletrônicos (tudo em mãos da propriedade privada e situado à sombra dos luxuosos prédios empresariais do centro de Miami).

O espanhol é o idioma oficial do bairro e a calle Ocho (rua 8), sua principal artéria. Por ela circulam, sob o sol inclemente da Flórida, cubanos com muita história para contar. Boa parte deles são exilados que deixaram Cuba após a revolução de 1959, em um êxodo que, no decorrer das últimas cinco décadas, desterrou centenas de milhares de pessoas da ilha caribenha: calcula-se que, por oposição ao regime castrista, 500 mil cubanos tenham se mudado para Miami apenas nos primeiros 15 anos do governo de Fidel.

Em um censo realizado pelo centro de estatísticas dos Estados Unidos em 2010, cerca de 1,9 milhão de habitantes do país afirmavam ter origem cubana. Mais de 1,2 milhão deles tinham moradia na Flórida. Boa parte dessa comunidade se destacou, durante sua história nos Estados Unidos, por fornecer diversos políticos para o Partido Republicano: o atual prefeito do condado de Miami-Dade, Carlos Giménez, nasceu em Cuba, cresceu em Little Havana e hoje pertence à agremiação dos Bush e companhia. E uma das estrelas do partido na atualidade é o senador pela Flórida, e de ascendência cubana, Marco Rubio, chamado pelo jornal britânico "The Telegraph" de "o príncipe" do movimento ultraconservador "Tea Party" - e conhecido por ser um defensor feroz do capitalismo norte-americano. 

  • Marcel Vincenti/UOL

    Símbolos cubanos se misturam com ícones dos Estados Unidos em muro de Little Havana

Porém, mesmo se destacando na política, os cubanos têm hoje uma renda anual menor e uma taxa de pobreza maior que a média estadunidense (ver quadro abaixo). Little Havana, por sua vez, ainda é a região mais representativa dessa comunidade.

Em um dia de passeio pela área, é possível ver apresentações gratuitas de música caribenha, obras de arte latinas e expressões religiosas como a "santería", além de provar receitas como o “moros y cristianos”, um prato à base de arroz, feijão, pimenta e toucinho muito consumido por cubanos de todo o mundo – sejam eles seguidores de Marx ou amantes do livre mercado.

Charutos e soldados

A calle Ocho corta boa parte do centro de Miami, e o bairro de Little Havana começa nos arredores do cruzamento com a avenida 11. É nessa esquina que está a loja “El Titán de Bronze”, que guarda uma linha de produção de charutos em seu interior. Mesmo que não queiram comprar nada, visitantes são bem-vindos e podem observar como uma equipe de dez pessoas produz, em um espaço exíguo, quatro tipos diferentes de charuto. Devido aos embargos impostos pelos Estados Unidos à ilha de Fidel, o tabaco usado pelos artesãos não é cubano: vem principalmente da Nicarágua e da República Dominicana.

Vida nos Estados Unidos

  • US$ 25 mil

    é a renda média anual de um trabalhador cubano nos EUA. O valor é menor que a média americana (US$ 28,500), mas maior que a média da comunidade hispânica no país (US$ 20 mil).

  • 19%

    dos cubanos que vivem nos EUA são considerados pobres. Entre a população geral dos EUA, 16% vivem na linha da pobreza.

  • 56%

    dos cubanos nos Estados Unidos têm casa própria. A média geral dos EUA para esse índice é de 65%.

  • 25%

    dos cubanos nos EUA não têm seguro de saúde, contra 16% da média geral.

Fonte: Census Bureau’s American Community Survey

    Ao andar em direção à avenida 13, o turista irá notar que Little Havana não é feita apenas de cubanos, mas de muitas outras comunidades latino-americanas que imigraram para a região. Na paisagem há restaurantes colombianos, lojas dominicanas e "taquerías" mexicanas, além de sotaques provenientes da Guatemala, Nicarágua, Venezuela, Equador e outras nações de colonização hispânica.

    É Cuba, porém, que manda no bairro. Na esquina da calle Ocho com a avenida 13 começa um bulevar que homenageia soldados cubanos que morreram em batalhas defendendo interesses estadunidenses. No lugar, há desde um memorial para os caídos na Guerra de Independência de Cuba (ocorrida entre 1895 e 1898 e que transferiu a influência sobre a ilha da Espanha para os EUA) até uma grande homenagem aos combatentes da Brigada 2506, que, treinada pela CIA e composta principalmente por cubanos exilados, tentou tomar Cuba de Fidel Castro na fracassada invasão da Baía dos Porcos, em 1961. 

    O episódio da Baía dos Porcos, inclusive, motivou a construção do principal museu de Little Havana: o "Bay of Pigs Museum & Library". O local, instalado em uma pequena casa atrás da calle Ocho, abriga armas usadas na invasão, fotos de combatentes mortos na operação e documentos que contam os detalhes da complicada relação entre Cuba e os Estados Unidos. 

    É perto do museu, sentado na frente de uma loja de sucos, que a reportagem do UOL conhece Orlando Domínguez, um senhor cubano de 64 anos que cuida de um dos restaurantes da calle Ocho. Vestido com chinelos, calça de sarja e camisa de mangas curtas, ele exibe um farto bigode e a pele envelhecida. Tem o olho esquerdo cego, totalmente baço.

    “Vim para os Estados Unidos com dez anos de idade, logo depois que Fidel tomou o poder em 1959”, conta ele. “Meu pai tinha um negócio de exportação de açúcar e resolveu fugir conosco depois que tudo foi confiscado. Colocou toda a família em um avião e nos mudamos para Miami”.

    • Marcel Vincenti/UOL

      Memorial de Little Havana homenageia soldados da Brigada 2506, que, treinada pela CIA, tentou tomar Cuba de Fidel Castro na fracassada invasão da Baía dos Porcos, em 1961

    Orlando afirma que teve dificuldades para conseguir emprego e, quando fez 18 anos, se alistou no Exército americano. Corria 1967 e não demorou para ele ser enviado ao Vietnã, em uma época em que a guerra contra os vietcongues atingia um de seus mais sangrentos momentos. “Quase morri algumas vezes e perdi a visão do meu olho esquerdo em uma explosão”, lembra ele. 

    Mostrando com orgulho sua carteirinha de veterano do Exército dos Estados Unidos, Orlando diz que não tem mais vontade de voltar a Cuba. “Não tenho mais parentes lá, meus filhos têm empregos em boas empresas americanas, levo uma vida relativamente confortável e, mesmo que o Fidel morra, não acho que as coisas vão mudar drasticamente na ilha”.

    La Negra Francisca

    Na frente do bulevar com as homenagens aos cubanos mortos em combate estão algumas das lojas mais interessantes de Little Havana. Uma delas é a “Botánica La Negra Francisca”, que vende produtos para a prática da santería – a religião sincrética caribenha que muito se assemelha ao candomblé.

    Dentro do estabelecimento, uma senhora vestida com trajes brancos dá conselhos em voz baixa (em espanhol) a uma mulher de meia-idade, que a escuta atentamente. O aroma amadeirado de diferentes incensos domina o lugar, que é recheado de prateleiras com estátuas de santos cristãos, figuras de animais e até a escultura de um homem parecido com um "preto velho", na frente do qual repousam velas e uma pilha de moedas.

    • Marcel Vincenti/UOL

      Lojas de charutos são algumas das atrações mais populares de Little Havana, em Miami

    A porta ao lado também é representativa da cultura cubana. Ela abre caminho para uma loja de antiguidades que vende livros, quadros e vestimentas militares usadas por ex-soldados de Fulgêncio Batista (o ditador que governava Cuba antes de Fidel Castro). O desafio é encontrar o estabelecimento aberto. Em sua vitrine, um aviso diz: “não temos hora ou dia para abrir. Se estiver precisando urgentemente de algo, ligue para nosso telefone”.

    Essa tranquilidade em relação à vida também pode ser encontrada em outras partes de Little Havana. No parque Máximo Gomez, por exemplo, cujo nome homenageia um militar que lutou pela independência de Cuba no século 19, dezenas de cubanos se reúnem periodicamente para jogar dominó e bater papo. O lugar, decorado com coloridos murais, foi um dos cenários da Primeira Cúpula das Américas em 1994, que reuniu diversos presidentes do continente (a pintura de Itamar Franco pode ser vista em uma das paredes do parque).

    Do outro lado da rua, o espaço cultural Cuba Ocho abriga exposições de obras de arte, shows musicais e um bar que reúne grupos de boêmios em plena luz do dia. Atrás de esculturas de madeira e quadros coloridos aparecem paredes forradas com fotos de Havana, cidade que, para uns, é um ponto de resistência do socialismo no mundo, e, para outros, um local a ser reconquistado.

    ATRAÇÕES DE LITTLE HAVANA:

    Loja e fábrica de charutos "El Titán de Bronze" -- Endereço: 1071, S.W. 8th Street. Telefone: 1.800.825.1412. Site: www.eltitancigars.com

    Memorial da Brigada 2506 -- Endereço: SW 8th Street com SW 13th Avenue.

    Bay of Pigs Museum & Library -- Endereço: 1821 SW Street com 9th Street. Site: www.bayofpigs2506.com

    Parque Máximo Gómez -- Endereço: SW 8th Street com SW 15th Avenue.

    Espaço Cultural Cuba Ocho -- Endereço: 1465 SW 8th Street. Site: www.cubaocho.com

    *O jornalista Marcel Vincenti viajou a Miami a convite da American Airlines e do SeaWorld Parks & Entertainment.