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Deguste os sabores da Itália pelo Vale dos Vinhedos, no RS

Cris Gutkoski

Do UOL, no Vale dos Vinhedos

18/02/2014 19h19

A uva, esse objeto redondo de desejo, move a indústria e o turismo gastronômico no Rio Grande do Sul. O Estado produziu 634 milhões de quilos de uva na safra de 2008, segundo o Ibravin (Instituto Brasileiro do Vinho). É cacho para encher estádios, colhidos em propriedades pequenas, médias ou grandes. Quase 90% das empresas vitivinícolas gaúchas estão localizadas ao norte, na Serra, no Vale dos Vinhedos e cidades vizinhas. A paisagem bonita, que lembra a Itália nas colinas com parreirais, na arquitetura e nos sotaques dos descendentes de italianos, recebe milhares de turistas a cada estação para degustar vinhos, espumantes, sucos de uva e produtos coloniais como queijos e salames.

Tudo acontece nas próprias vinícolas, que abrem suas portas, na zona rural, para leigos e especialistas no tema da enofilia, que é o amor pelo vinho. Mesmo uma degustação rápida vai testar as diferenças de sabor de uvas como a Tannat, a Cabernet Sauvignon e a Merlot, para os tintos, ou Chardonnay, Malvasia e Riesling, para os vinhos brancos. Uma visita guiada pode apresentar os métodos de fabricação de espumantes, como o charmat (refermentação em tanque) e o champenoise (refermentação na garrafa). Num curso ou conversa mais longa com enólogos, o visitante descobre que bouquet não é flor no plural, mas a sensação olfativa que um vinho mais complexo deixa experimentar, como aroma de pimenta ou cravo. Basta um final de semana na companhia de barricas de carvalho para o turista segurar a taça de outro jeito e começar a cheirar até rolha.

O chamado Vale dos Vinhedos compreende áreas dos municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, a cerca de 130 km de Porto Alegre. Próximas dali, as cidades de Flores da Cunha, Caxias do Sul e Farroupilha também são importantes produtoras de uva. Bento Gonçalves é ponto de partida também para um roteiro especial, Vinhos de Montanha, no distrito de Pinto Bandeira, enquanto um circuito diferente mas de nome parecido, Vinhos dos Altos Montes, visita cantinas de Flores da Cunha e Nova Pádua.

Para quem vem de longe, alugar um carro permite circular entre dezenas de vinícolas nas rodovias e "linhas", as estradinhas sinuosas, e ainda conhecer recantos mais exclusivos, com as casas e sobrados dos Caminhos de Pedra, projeto que preserva as origens dos primeiros imigrantes italianos, erguidas no final do século 19 e começo do século 20. Tem a Cantina Strapazzon, de 1880, toda em pedra irregular, a Casa Merlin, com 43 janelas e portas nas fachadas, a Casa das Massas, de 1935, com restaurante e degustação de chá e biscoitos, em três andares de madeira, e várias outras para visitar ou apenas registrar na memória, nas fotos.

Considerando o poder etílico do enoturismo, uma alternativa de transporte são os traslados das agências de receptivo, cujos passeios de um turno ou dia inteiro propõem uma combinação de vinícolas, restaurantes, lojas e lugares históricos, como a Igreja São Bento, em forma de pipa gigante. Dá para misturar tintos, brancos, espumantes e grappas nas degustações, sem medo de precisar dirigir na volta. Existem pacotes que privilegiam a alta gastronomia, em jantares exclusivos, com a presença de chefs e sommeliers.

Principal produtora de vinhos e espumantes do Brasil, a região do Vale dos Vinhedos obteve em 2007 o reconhecimento, pela União Europeia, de seu Selo de Indicação de Procedência. Desde então, com o selo de qualidade IPVV colado no gargalo, cresceram a participação e a premiação dos vinhos gaúchos em concursos internacionais. O know-how é longo: a primeira cooperativa vinícola brasileira surgiu ali, nos anos 30 do século 20. As uvas e o trabalho braçal para fazer o vinho deram a primeira indústria para Caxias do Sul e região. A cidade celebra a sua Festa da Uva desde 1931, há mais de 80 anos.

Essa tradição ampliou os roteiros turísticos e criou uma diversificada estrutura de hospedagem. Há pousadas simples ou luxuosas, hotéis com instalações modernas e o sonho de consumo de qualquer amante do vinho: a hospedagem na própria vinícola, com vista desde a janela do quarto para as curvas sem fim dos parreirais, que ficam especialmente animados na época da colheita, de janeiro a março.

No extremo Sul, cada estação do ano traz temperaturas diferenciadas. Visitar as vinícolas de junho a agosto agrega o charme extra da neblina e do frio, convidando os visitantes a se demorarem diante da fartura das refeições nas cantinas. As temperaturas amenas do outono e primavera facilitam a vida nas trilhas a pé, de bicicleta e o circuito das atividades ao ar livre no Vale do Rio das Antas, especialmente o rafting. Os meses de calor tornam mais atraentes as borbulhas geladinhas da Rota dos Espumantes, e quem visita o Vale dos Vinhedos de novembro a janeiro pode espichar a viagem até Gramado e Canela, a 120 km, para conferir a decoração ultraespecial de Natal.

Mas são os meses da colheita, de janeiro a março, os mais divertidos. Eles coincidem com as maiores festas, a Fenavinho, em Bento Gonçalves, e a Festa da Uva, em Caxias. Junto com pelotões de moradores, os turistas também podem botar a mão na massa, ou melhor, nos cachos que enchem os cestos rumo às fábricas. É a hora de descobrir todos os roxos, rosados e verdes do universo, os aromas, açúcares e texturas dos grãos, notar que uvas comuns fazem os vinhos de mesa e uvas nobres são reservadas para vinhos finos. Na vindima, os parreirais que exibiam os galhos secos no inverno explodem em cores e cheiros. Acostumados com a beleza da paisagem, com aquela Toscana subtropical no quintal de casa, os trabalhadores ainda temperam a colheita bebendo vinho desde a manhã, nos lanches com pão, salame e queijo antes do almoço.

Em qualquer época do ano, não custa trazer na bagagem uma certa disposição para ficar alegre no Vale dos Vinhedos. As altitudes superiores a 650 m da região estimulam a observação das coisas sob outros pontos de vista. Uma síntese da alegria se exibe nos trajetos de uma hora e meia da Maria Fumaça, em que atores, músicos e dançarinos interagem com os passageiros.

O vinho revela, já diziam os filósofos da Antiguidade, milênios antes da qualidade da bebida de Baco (para os romanos) ou Dioniso (para os gregos) começar a ser medida com pontos e decimais. Revela afetos, angústias, talentos insuspeitos. É comum ver gente dispensar a sobremesa do sagu para sair bailando nas cantinas. Já aconteceu de turistas pedirem garçons e músicos em casamento, ou vice-versa. Volta e meia alguém repete a taça, ganha coragem, sai da mesa e pede à banda para tocar o acordeão de sete baixos, um tango ou uma valsa do folclore alemão, para variar o repertório de tarantelas. A animação ali resulta de uma assemblage de humores, dos colonizadores italianos, esses românticos, e da irreverência local, que elege qualquer tema como motivo de gozação, de trocadilho. É claro que até o final do dia alguém vai dizer que os hóspedes do spa do vinho saem de lá se sentindo umas uvas.