UOL Viagem

29/12/2008 - 17h40

Cracóvia, a Polônia em toda sua beleza e tragédia

MARCEL VINCENTI
Colaboração para o UOL, da Polônia

Marcel Vincenti/UOL

Vendedor pendura quadros em um dos muros da stare miasto, o centro histórico de Cracóvia

Vendedor pendura quadros em um dos muros da stare miasto, o centro histórico de Cracóvia

Todos os dias, a cada hora, uma melancólica música toma conta da praça central de Cracóvia, no sul da Polônia. É um clarim solitário que, desde o topo da Basílica de Santa Maria, cumpre uma das mais arraigadas tradições locais: dar a ordem de fechamento dos portões da cidade (que não mais existem). A melodia é bela e simples. Mas acaba interrompida, subitamente, na metade de sua execução. Reza a lenda que os tártaros, ao tentarem invadir Cracóvia no século 13, acertaram uma flechada no clarim, enquanto este alertava seus patrícios sobre o iminente desastre. A música cessou, o músico morreu, mas seu ato heróico é até hoje homenageado por aqui.

Cracóvia, com seus mil anos de idade, é um labirinto de histórias. Considerada a capital cultural da Polônia (os políticos ficam com Varsóvia), a cidade é o principal testemunho das épocas de glória e tragédia do país. Sua stare miasto (cidade velha), sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, e tombada pela Unesco como patrimônio da humanidade, é uma coleção de fortificações, praças medievais e prédios centenários. Parte indissociável dessa paisagem, o rio Vístula corre entre parques e pontes e, desde uma de suas margens, surge a verde colina que sustenta o complexo Wawel.

Construído, destruído e reconstruído entre os séculos 11 e 19, esse quartel-general do antigo reino da Polônia abriga edificações góticas, barrocas e renascentistas. O castelo, a mais importante delas, tem em seu interior um conjunto de salas que exalam pompa real. As paredes forradas por couro de cabra, tapeçaria persa e monarcas em quadros, e a mobília vinda de Florença, fazem o visitante esquecer que está pisando em chão de mármore.

Os reis estão enterrados ali ao lado, na Catedral dos Santos Estanislau e Venceslau. Foram alguns deles (como Sigismund I, "O Velho") que, desde aqui, colocaram a Polônia na rota das idéias do Renascimento. Nicolau Copérnico, o polonês que tirou a Terra do centro do universo, estudou na cidade. O manuscrito de sua obra-prima (De Revolutionibus Orbium Coelestium ou "Da Revolução dos Orbes Celestes") está em Cracóvia, na biblioteca da Universidade Jagielloński (a segunda mais antiga da Europa Central, criada em 1364).

Das luzes às trevas

Boas histórias, na pátria polonesa, infelizmente, tendem a acabar de maneira brusca, tal qual o toque do clarim. Dominado e dividido por Áustria, Rússia e Prússia no final do século 18, o país foi riscado do mapa. Reconquistou sua independência em 1918, ao final da Primeira Guerra Mundial, só para, anos depois, ser uma das mais maltratadas nações durante a Segunda Guerra. Cerca de seis milhões de poloneses mortos, metade deles membros da comunidade judaica.

Antes de 1939, mais de três milhões de judeus viviam na Polônia. Censo realizado no ano de 2002 identificou apenas 1.133 deles no país na época. O diretor do Centro da Comunidade Judaica de Cracóvia, Jonathan Ornstein, por outro lado, calcula que atualmente haja um pouco mais: aproximadamente cinco mil.

Conhecer Cracóvia é tomar contato direto com a história do holocausto. A Polônia foi, durante séculos, conhecido centro de tolerância religiosa. Discriminados em outras partes da Europa, os judeus atribuíam à nação status de porto seguro. Muitos se estabeleceram no bairro de Kazimierz, a poucos quarteirões da stare miasto.

A Alta Sinagoga, a Sinagoga de Isaac, a Sinagoga Remuh e a Velha Sinagoga, todas centenárias, surgem como testemunho de uma comunidade que fincou raízes na região. O Novo e o Velho Cemitério Judeu, com suas lápides simples e amontoadas umas sobre as outras, são eloquentes em seu silêncio.

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O Novo Cemitério Judeu, no bairro de Kazimierz, é testemunho de uma comunidade que fincou raízes em Cracóvia
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Hoje, Kazimierz é um bairro que abriga repúblicas de estudantes e animados bares. Está lá também a sede do Centro da Comunidade Judaica de Cracóvia (JCC). Aberta em abril de 2008, a organização tem como objetivo reafirmar a cultura judaica na cidade. Promove celebrações importantes do calendário judeu (como chanucas), aulas de hebraico, entre outros eventos. "Para mim, como judeu, é muito difícil viver em um lugar onde tanta coisa ruim aconteceu conosco", diz o diretor Jonathan Ornstein, nova-iorquino que trocou o Queens por Cracóvia. "E há muitos judeus aqui, principalmente os jovens, que não se identificam mais com a nossa religião e cultura. Mas temos trabalhado para reativar a comunidade".

A história, porém, continua ali ao lado. Os prédios de fachada cinzenta que rodeiam a rua Starowiślna - uma das principais artérias de Kazimierz - formam, ainda nos dias de hoje, um corredor lúgubre em direção à ponte Powstańców Śląskich.

Foi em um gueto construído do outro lado do rio Vístula, no bairro de Podgórze, que os nazistas enclausuraram, entre 1941 e 1943, aproximadamente 17 mil judeus de Cracóvia. Um dos muros continua de pé. E ainda resiste, como espaço aberto, a Praça Zgody, de onde saíam os comboios, lotados de prisioneiros, em direção aos campos de concentração abertos na região. Plaszów (lembram do filme "A Lista de Schindler" ?) está logo ali. O complexo Auschwitz-Birkenau, a duas horas de distância.

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"O trabalho liberta": o campo de concentração Auschwitz, com seu infame slogan, está localizado na região de Cracóvia
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O vazio desses lugares gera memórias aterradoras. Os trilhos entram em Birkenau, atravessam o campo por um par de quilômetros e acabam, lá no fundo, também, de maneira brusca. O fim. Judeus, ciganos, prisioneiros de guerra, entre outros desafortunados, desciam do trem e já eram, na maior parte das vezes, encaminhados às câmaras de gás (demolidas quando os nazistas, derrotados, batiam em retirada).

Um grupo com mais de cem soldados do exército israelense visita o campo de concentração. Ouvem, em silêncio, explicações, em hebraico, de dois guias. Mais de um milhão de pessoas foram assassinadas no complexo Auschwitz-Birkenau. O terror acabou, mas o vazio permanece.

O novo velho destino

Copérnico, o homem que tirou a Terra do centro do universo, estudou em Cracóvia. Karol Józef Wojtyla, o homem que buscou manter a Igreja Católica no centro da Terra, foi arcebispo da cidade. Wojtyla, também conhecido como papa João Paulo II, é a imagem de um país que se orgulha de sua fé fervorosa. De acordo com a central de estatísticas do governo, 88% dos poloneses se dizem católicos.
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Antes de ser papa, João Paulo II foi arcebispo de Cracóvia
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Em Cracóvia, igrejas estão por todas as partes. A Basílica de Santa Maria, com seu belo estilo gótico, é a mais importante delas. Erguida em uma das esquinas da Rynek Główny (ou Praça do Mercado Principal, uma das maiores praças medievais da Europa), a edificação abriga um celebrado altar de 13 metros de altura criado, no século 15, pelo artista alemão Veit Toss. As missas de domingo são lotadas.

À sua frente, a igreja de São Adalberto, erguida no século 11, atrai os fiéis para um ambiente mais intimista. Mas não se enganem: Cracóvia tem também propensão para o pecado. Com uma numerosa comunidade universitária, bares e discotecas animam o dia-a-dia local. E as festas são sempre regadas a uma das paixões nacionais: vodca.

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Com mais de mil anos de história, Cracóvia é a capital cultural da Polônia
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Com tanta beleza, história e diversão, Cracóvia tem se tornado, cada vez mais, destino obrigatório para viajantes que perambulam pela Europa. E alguns vão mais longe. O escocês George Power, por exemplo, veio morar na cidade. Seu objetivo: aprender o polonês. "Escolhi Cracóvia porque, aqui, a história me incentiva a estudar o idioma. E a cidade é realmente linda". Rapaz corajoso: se o húngaro é a língua do diabo, o polonês é seu dialeto. Imaginem pronunciar a frase "Cześć, jak się masz? Mam na imię George!", só para dizer "Olá, tudo bom? Meu nome é George". Prefiro me limitar ao na zdrowie! (saúde!).

Veja mais: Fotos da passagem de Marcel pela Cracóvia

* O mochileiro Marcel Vincenti, 25 anos, partiu dia 9/4/08 para uma volta ao mundo de 12 meses e mostra todo mês em UOL Viagem o que tem visto por aí. Saiba mais

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