UOL Viagem

25/11/2008 - 19h52

Berlim, a capital lado B da Europa

MARCEL VINCENTI
Colaboração para o UOL, da Alemanha

Marcel Vincenti/UOL

Obras que brincam com o passado socialista de Berlim Oriental estão por todas as partes

Obras que brincam com o passado socialista de Berlim Oriental estão por todas as partes

Berlim... Tanta história, e ainda uma página em branco! Devastada pela guerra, dividida pelo muro, a capital alemã fez brotar arte de suas ruínas. Hoje unida, mas não totalmente reconstruída, a cidade não nega o seu passado: subverte-o. E o faz com criatividade. Artistas de todo o mundo vivem aqui. Por quê? Há muito espaço livre, e há muito livre arbítrio. Stalin e Hitler. Stasi e Gestapo. A ideologia da repressão já era. Berlim é atualmente o mais libertário dos lugares.

O muro caiu. A segregação acabou. Deu-se outra dimensão ao conceito de coletividade. Os edifícios abandonados de Berlim Oriental foram ocupados por autênticas sociedades alternativas: pintores, escultores e outros criativos seres humanos, muitos da parte Ocidental do país, mas todos dispostos a gerir sua arte em conjunto.

O muro caiu, mas, para a alegria dos grafiteiros de Berlim Ocidental, muitos outros sobraram. O lado leste da cidade surgiu recheado de fachadas quadradas e cinzentas. Obras de intervenção urbana estão hoje por todas as partes. Goste-se ou não, chame-se de arte ou não, essa é umas das marcas atuais da capital alemã. De Banksy a Blu, os mais renomados artistas de rua do planeta já passaram por aqui.

O Kunsthaus Tacheles é hoje o mais famoso dos espaços ocupados por artistas alternativos em Berlim. "Tacheles" é um verbo iídiche que significa "falar com honestidade". Iídiche é o idioma germânico usado por comunidades judaicas ao redor do mundo. Uma deliciosa provocação ao passado do prédio que abriga a coletividade. O local foi escritório das SS (ou Schutzstaffel, a tropa de elite do Partido Nazista Alemão) durante a 2ª Guerra Mundial. Aprisionou soldados franceses e chegou a ser bombardeado.

Hoje, o edifício é uma carcaça cheia de espírito. Suas escadarias e corredores grafitados abrem caminho a arejados estúdios, nos quais artistas criam e expõem suas obras. Pode ser uma colorida pintura a óleo, pode ser uma montagem multimídia. Pode ser de um alemão, pode ser de um iraquiano. Fronteiras, aqui, são tão abstratas como os quadros nas paredes.

Pergunto a Martin Reiter, membro do Tacheles desde 1993, e atualmente administrador da organização, como Berlim veio a se tornar tão importante pólo de arte alternativa. Sentado no velho sofá de seu escritório, os longos cabelos encaracolados a lhe cobrir os ombros, ele responde "É fácil dizer. Trata-se da cidade com um dos menores custos de vida na Europa. É o local ideal para jovens artistas, pois Berlim não está pronta ainda".


Urbe lado B

De fato, muitas partes da capital alemã ainda detêm aspecto de (promissor) esboço. No bairro de Prenzlauer Berg, prédios de aparência árida abrigam interessantes galerias de arte. Fábricas abandonadas em Friedrichshain ganham cor com criativos grafites. Em Kreuzberg, um dos bairros mais pobres de Berlim Ocidental, conhecido reduto de punks e turcos, artistas montam seus ateliês dentro de sucateados edifícios.


O cineasta Alf Spaeth em frente a seu estúdio, no bairro de Kreuzberg
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Alf Spaeth é um deles. Cineasta, ele tem, dentro de pequeno apartamento, um museu com os cenários que produziu para filmes alemães lado B. Caveiras, bonecos, quartos iluminados por intensa luz vermelha, retratos do ator Klaus Kinski. Alf, fumando um cigarro, sentado em uma cadeira, um cachorro em seu colo. O artista não fala inglês. Apenas responde "yes, yes, yes", sempre três vezes, de maneira engraçada, às minhas perguntas. Com os longos cabelos avermelhados cobertos por uma boina russa, e óculos de lentes cor-de-rosa, Alf é uma figura. E quando lhe pergunto sobre uma foto, pendurada na parede, em que ele passa creme (ou algo parecido) em uma mulher nua, a réplica é rápida: "yes, yes, yes". Arte, realmente, não se explica.

Em Kreuzberg está outro conhecido centro de ocupação artística de Berlim: o Künstlerhaus Bethanien. Construído como hospital luterano em 1847, o histórico edifício iria ser demolido em 1974. Um grupo de artistas o ocupou e estabeleceu ali um centro de criação e exposição de arte. Hoje, pessoas de todo o mundo vêm ao Bethanien para, como residentes, aperfeiçoar seus dons criativos. Suas obras - quadros, fotografias, esculturas e afins - podem ser apreciadas gratuitamente, ou por preços simbólicos, dentro do antigo centro de cura.

A colombiana Viviana Ponce de León é um dos muitos artistas estrangeiros que adotaram Berlim como seu ateliê oficial. Pintora, e muito afeita ao misticismo, ela diz que em seus quadros a óleo se descobre "o grande espírito da selva vibrando com a autêntica força xamânica"... Arte não se explica? Viviana diz mais: "em Berlim há um ambiente multicultural que permite a flexibilidade de comportamento das pessoas", o que explica tanta efusão artística. A conversa se dá dentro de um dos estúdios do Tacheles. Em um canto, o artista alemão Tin Tin Philipps toca o monocórdio, instrumento de madeira, com apenas um corda, de estranha ressonância: música lado B, de Berlim

Encontros inusitados

Estar na capital alemã é presenciar cenas inusitadas. O passado da cidade, ainda visível em sua paisagem, é posto constantemente em estado de desordem. Acompanho um show da banda berlinense Magnificent Brotherhood, que mistura estilo neo-hippie ao peso do garage rock, em Rosa Luxemburg Platz. Antigo centro da Berlim Socialista, o local não deve ter vivido os anos 1960 em toda sua magnitude. Na parede vermelha do clube, um tributo irônico: um quadro de Lênin, que olha a todos com sisuda feição. Nada que lembre o rosto chapado dos sessentões cabeludos e jovens eufóricos que compõem a platéia.


Na Rosa-Luxemburg-Platz, bandas subvertem o passado autoritário da antiga República Democrática Alemã
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E nada que lembre qualquer paisagem terráquea é um dos monumentos deixados pela Guerra Fria na cidade. Uma antiga base de espionagem da NSA (a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos) ainda ocupa o topo de Teufelsberg (ou "montanha do diabo"), no extremo oeste de Berlim Ocidental. A cúpula sobre a torre principal se parece a um planetário. Mas ninguém aqui queria observar as estrelas. Desde Teufelsberg, os norte-americanos usavam toda a sua tecnologia para se infiltrar no sistema de comunicação militar de Berlim Oriental.

O lugar está atualmente abandonado. O vento invade o interior oco dos edifícios e gera uma barulho assombroso. Uma obra-de-arte futurista do passado que, no presente, é mais um espaço em branco para os grafiteiros locais.

Novos tempos

Berlim teve um século 20 conturbado e a história todos sabem: guerras, racismo, segregação, megalomania, ruína. Hoje, início de século 21, a urbe se reinventa com uma criatividade pouco vista em outros lugares do mundo. Com um prefeito que admitiu ser gay (Klaus Wowereit), a capital alemã mostra que sabe "falar com honestidade", seja na pintura, na música, no cinema ou nos engenhosos protestos que sempre ocorrem por aqui.


O Kunsthaus Tacheles está instalado em edifício usado pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial
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Os artistas alternativos de Berlim, porém, andam preocupados: afirmam que os antigos prédios da cidade estão sendo tomados por especuladores imobiliários e que logo vão virar enormes templos do consumo. É o caso do Tacheles. O histórico edifício foi comprado, nos anos 1990, pelo fundo de investimentos Fundus Group. O tempo de permanência concedido à coletividade expira ao término deste ano. Será o fim? Martin Reiter, o administrador do Tacheles, pensa por um tempo, mas responde com convicção. "Vamos encontrar uma maneira de ficar aqui. Vamos sobreviver". Em uma cidade como Berlim, que sobreviveu a tantas desventuras, há razões para se estar otimista.

Veja mais: Mais fotos da passagem de Marcel por Berlim

* O mochileiro Marcel Vincenti, 25 anos, partiu dia 9/4/08 para uma volta ao mundo de 12 meses e mostra todo mês em UOL Viagem o que tem visto por aí. Saiba mais

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