UOL Viagem

28/10/2008 - 16h15

Hong Kong, um gigante à sombra da China

MARCEL VINCENTI
Colaboração para o UOL, de Hong Kong

Marcel Vincenti/UOL

Hong Kong vista do pico Vitória: sob domínio britânico por quase 160 anos

Hong Kong vista do pico Vitória: sob domínio britânico por quase 160 anos

Poucos lugares do mundo são tão contraditórios, e tão convictos de suas contradições, como Hong Kong. Aqui, Pequim e Nova York parecem fundir-se em uma só metrópole, gerar paisagens urbanas de ar surreal e dar cria a inusitada espécie de ser humano: o chinês capitalista.

Com população atual de 6,92 milhões de pessoas, espremidas em um território de 1.104,27 km² (são mais de 260 ilhas e um naco do continente asiático), Hong Kong esteve, durante 156 anos, sob domínio colonial britânico. Foi restituído à República Popular da China em 1997, com a condição de que seu sistema político e econômico, altamente favorável ao livre mercado, fosse preservado por pelo menos 50 anos.

Mais de uma década após a devolução, Hong Kong, hoje denominado Região Administrativa Especial da China (SAR, na sigla em inglês), ainda é um dos principais centros financeiros e portuários do mundo. Cerca de 90% de seu Produto Interno Bruto (PIB) é gerado pelo setor de serviços e sua renda per capita destaca-se como uma das maiores da Ásia: US$29,900. O senhor Giorgio Armani que o diga. Suas lojas, a exemplo de outras grifes famosas, onipresentes nos bairros comerciais da metrópole, desfrutam da cultura consumista que domina a atitude local.

É incrível pensar - e difícil admitir - que esse lugar, mesmo com sua autonomia, faz hoje parte de um país socialista. Mas os habitantes da SAR (95% são chineses ou têm ascendência chinesa) já encamparam a idéia. O último dia 1º de outubro marcou os 59 anos da proclamação da República Popular da China por Mao Tsé-tung. Aproximadamente 300 mil pessoas, segundo os jornais locais, foram até o porto Vitória para celebrar a data. Sob os arranha-céus (muitos deles sedes de bancos) e as luzes neon do comércio, que definem a paisagem da metrópole, elas aplaudiram os fogos de artifício que explodiam em homenagem à vitória comunista de Mao.

Wong Tsz Lok, um jovem estudante de design industrial que mora em Causeway Bay - um dos bairros mais caros da região - diz que não esteve lá, que viu tudo pela televisão, mas dá uma boa definição de como um cidadão de Hong Kong se posiciona em relação à pátria-mãe chinesa. "Nunca fui à China. Mas se as pessoas quiserem me chamar de chinês, tudo bem. Hong Kong é um lugar eficiente, que me dá oportunidades de trabalho e chances de viver em um local com cultura internacional. A China tem uma história que admiro, e é um lugar que pretendo visitar e, quem sabe, um dia morar lá". Há essa divisão quando os locais falam de si mesmos e de seu poderoso dono/vizinho: "Hong Kong é modernidade, a China é tradição".

O crescimento chinês, porém, tem sido fundamental para o bem-estar da economia local. Segundo o departamento de estatísticas da SAR, a China é hoje o principal parceiro comercial de Hong Kong, sendo responsável por 35% dos investimentos estrangeiros feitos na região. E dos 28,1 milhões de turistas que visitaram Hong Kong em 2007, 15,5 milhões vinham de aeroportos chineses. Talvez os nativos estejam certos ao comemorar o 1º de outubro.

Identidade própria

Sentada à entrada da estação de metrô Wan Chai, uma das mais movimentadas de Hong Kong, uma senhora ergue cartazes contra a perseguição do grupo religioso Falun Gong pelo governo de Pequim. Fotos de pessoas torturadas estão em exposição e, em uma faixa, a exigência: "Tragam Jiang Zemin (o ex-presidente chinês) à justiça!". Improvável de ocorrer em qualquer cidade chinesa, aqui, tal manifestação é possível.


Ônibus decorado com colorida propaganda: Hong Kong é um templo do consumo
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As pessoas em Hong Kong desfrutam de boa liberdade de expressão e, segundo a organização Repórteres sem Fronteiras, a Região Administrativa Especial tem a 61ª posição do ranking que classifica a liberdade de imprensa no mundo (à frente do Brasil, que está em 84º), enquanto a China ocupa a 163ª posição (são 169 nações listadas).

Hong Kong possui, sem dúvida, identidade própria. Seu idioma oficial, o cantonês, é diferente do mandarim, o principal dialeto da China. Seu chefe do executivo é um senhor que usa gravatinha borboleta e atende pelo nome de Donald, Donald Tsang. E a paisagem urbana da SAR carrega um modernismo difícil de ser superado por outras metrópoles (há prédios encardidos nas periferias, é bom ressaltar, que lembram muito as construções do centro de São Paulo).

Desde o pico Vitória, é possível admirar os enormes edifícios que, como iluminadas ondas de concreto, delineiam a paisagem futurista deste conglomerado urbano. Navios cargueiros (mais de 243 milhões de toneladas de carga passaram por aqui em 2007) atravessam o porto em um distante silêncio, sua aparência enferrujada a contrastar com a opulência inoxidável dos arranha-céus. Na outra margem da baía está o bairro de Tsim Sha Tsui, parte da península de Kowloon, onde um longo calçadão exalta as estrelas cinematográficas locais, como Bruce Lee e Jackie Chan.

A lista das celebridades cultuadas por aqui inclui ainda outro Donald, o Pato. Desde o ano de 2005, a Disneylândia tem uma filial na ilha de Lantau, que é atualmente uma das principais atrações turísticas da SAR. E se uma visita ao castelo da Bela Adormecida for considerada algo fora de sintonia com estas latitudes, as noites de Hong Kong oferecem concertos (algumas vezes gratuitos) de Ópera Cantonesa, uma das mais tradicionais performances artísticas locais.


Mulheres muçulmanas observam estátua de Bruce Lee, um dos astros do cinema de Hong Kong
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O exercício do tai chi chuan também pode ser acompanhado de perto aqui. Todas as manhãs dezenas de pessoas vão aos parques para praticar a ancestral arte marcial chinesa. Realizam seus cadenciados movimentos em silêncio, enquanto grupos de mulheres muçulmanas, antes de irem ao trabalho, conversam animadamente sob as árvores. São mais de 90 mil seguidores do islamismo que vivem SAR (a maioria imigrantes indonésios), e elas, com seus chamativos véus coloridos, ajudam a embelezar os já formosos espaços verdes que permeiam Hong Kong.

A natureza tem seu espaço nesse território. Aproximadamente 40% da SAR é ocupado por áreas protegidas, que abrigam, inclusive, belas praias desertas. A reserva natural Mai Po, por exemplo, chega a receber 100 mil pássaros migratórios todos os anos.

E pensar que a história dessa metrópole começou com uma disputa motivada por algumas toneladas de ópio. Com o objetivo de tornar mais rentável suas relações comerciais com os chineses, com quem fazia negócios desde um porto na província de Cantão, a Grã-Bretanha começou a lhes vender o narcótico, trazido diretamente da Índia. A proibição e as represálias impostas pela dinastia Qing a tal prática (boa parcela da população chinesa começou a se viciar na droga) gerou a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), durante a qual os vitoriosos britânicos assumiram controle da ilha de Hong Kong. Mais de um século e meio se passou, a modernidade tornou-se uma das principais marcas da região e o ópio, hoje fora de moda, foi desbancado por hipnóticas bolsas Louis Vuitton.

Veja mais: Mais fotos da passagem de Marcel por Hong Kong

* O mochileiro Marcel Vincenti, 25 anos, partiu dia 9/4/08 para uma volta ao mundo de 12 meses e mostra todo mês em UOL Viagem o que tem visto por aí. Saiba mais

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