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Atrações, gastronomia e situações inusitadas a bordo do Queen Mary 2

Dwight Garner

New York Times Syndicate

16/03/2013 11h03

A primeira regra a respeito de viajar entre os Estados Unidos e a Inglaterra a bordo do Queen Mary 2, o navio capitânea da Cunard Line e o maior transatlântico do mundo, é nunca se referir à sua aventura como um cruzeiro. Fica entendido que você está realizando uma travessia. A segunda regra é evitar, ao falar com aqueles que viajam com frequência nos navios da Cunard, chamá-los de viajantes regulares. O termo adequado –melhor pronunciado de modo parecido com o sotaque de Maggie Smith em "Downton Abbey"– é cunardistas.


A terceira regra, não dita, é a de não atirar as taças de champanhe nas águas do Atlântico Norte. Minha esposa, Cree, quebrou essa regra. Era nossa segunda noite a bordo do navio. Estávamos fazendo a travessia, em janeiro, de Nova York a Southampton. Eu estava trajando black-tie. Ela estava em um pequeno vestido preto extraordinário. Nós estávamos embalados, no salão de baile do navio, ao som de uma boa orquestra. Nós estávamos felizes e levemente embriagados.

Abrimos uma porta para o convés. O vento gelado era sentido impiedosamente em nossos ossos, mas era impossível nos afastar da balaustrada. O Atlântico Norte em janeiro não é brincadeira; sua beleza é fascinante. É uma espécie de vulcão, um que parece exigir uma oferenda. Melhor uma taça de champanhe do que se atirar da balaustrada.

Esse impulso de atirar taças aparentemente é antigo. Evelyn Waugh, em seu livro de viagens "Labels" (1930), descreveu estar sozinho no convés de um navio à noite no Mediterrâneo, com uma taça de champanhe na mão.

"Sem nenhum bom motivo aparente em que agora possa pensar", ele escreveu, "eu a atirei por sobre a lateral, a assisti pairar por um momento no ar à medida que perdia o impulso e então ser apanhada pelo vento, e em seguida a vi flutuar e cair no remoinho das águas".

Waugh acrescentou: "Este gesto (...) tornou-se estranhamente importante para mim".

Se viajar deixa você um pouco imprudente e aguça seus sentidos, estar a bordo do Queen Mary 2 no inverno duplica esse senso de intoxicação. O oceano revolto, batendo nas janelas do elegante salão de jantar, a 60 centímetros de sua garrafa de Borgonha branco e seu tartare de atum, aciona o interruptor dos seus instintos de sobrevivência. Você se vê voraz: comendo um pouco mais, planejando ficar acordado até um pouco mais tarde, demorando um pouco mais no sexo.

Qual é o lance entre navios (e trens e aviões) e sexo? Nós refletimos sobre esta questão com avidez depois que um garçom desconhecido do QM2 se aproximou de Cree no início de uma tarde, enquanto ela estava lendo sozinha ao lado de uma janela no bar do navio.

O garçom, Cree relatou posteriormente, era muito atraente, de uma forma que lembrava o ator Andy Garcia. Ele ficou estranhamente perto.

Ele conversou um pouco e acabou comentando: "Se houver alguma coisa que eu possa fazer para tornar sua viagem mais agradável, me avise".

Ele se afastou, então voltou até Cree 15 segundos depois e sussurrou, a olhando nos olhos, "Qualquer coisa".

Esse convite foi um grande presente para nós –para Cree, para mim e para um amigo, Will, que estava viajando com a gente– porque durante o restante da travessia nós dizíamos lascivamente, pelo menos de hora em hora, aquele que decidimos que deveria ser o novo slogan da Cunard: "Cunard. Qualquer coisa".

Nossa travessia teve um início estranho em mais de um sentido. Nós embarcamos no QM2 no Terminal de Cruzeiros do Brooklyn, em Red Hook, em uma quinta-feira, para o que seria uma viagem de sete noites para Southampton. O transatlântico pode facilmente concluir essa viagem em seis dias, mas ele reduz o ritmo, como uma balada, para economizar combustível e prolongar o prazer de seus passageiros.

Ao deixarmos do terminal para embarcar no navio, uma faixa enorme no alto declarava ominosamente: "Saindo de Brooklyn? Sem essa!"

  • Michael Kirby Smith/The New York Times

    Hóspedes aproveitam o ambiente do Britannia Restaurant do Queen Mary 2

É o tipo de pequeno toque que faz você se recordar da observação de Nancy Mitford: "Os norte-americanos naturalmente querem escapar da América do Norte".

Nossa partida foi adiada por várias horas porque o navio estava passando por uma lavagem completa, sob a vigilância dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças. Tinha ocorrido um surto de norovírus –uma doença altamente contagiosa, cujos sintomas incluem vômitos e diarréia– a bordo da viagem recém concluída, um cruzeiro de Natal pelo Caribe. Mais de 200 pessoas adoeceram.

Nossa travessia, portanto, tornou-se uma operação de nível quase militar de erradicação do norovírus. Dispensadores de antisséptico foram instalados, como sempre, nas entradas dos restaurantes do navio. Se você ignorasse os dispensadores, garçons vigilantes nas proximidades esguichavam um pouco de álcool nas palmas de suas mãos. Havia 2.481 passageiros a bordo do nosso navio, assim como 1.242 tripulantes, e, coletivamente, passamos a travessia esfregando as mãos com álcool como vilões de um filme mudo épico.

Um slogan mais exato do que "Cunard. Qualquer Coisa" provavelmente seria "Cunard. Tudo". O Queen Mary 2, mais longo do que a altura do prédio da Chrysler, se empenha para oferecer uma riqueza de opções. A programação de cada dia, deixada à sua porta na noite anterior, é recheada com mais atividades do que o fim de semana dos pais em uma boa faculdade de artes liberais: palestras, filmes, recitais, produções musicais, encontros LGBT, serviços religiosos, aulas de aquarela, reuniões do AA, shows de planetário, degustações de vinho, sessões de Pilates, jogos de cartas.

A maioria dessas distrações é cuidadosamente apresentada. Após a exibição do recente "O Exótico Hotel Marigold" no cinema, por exemplo, era possível assistir a uma palestra e uma sessão de autógrafos do livro de uma de suas estrelas, a atriz Celia Imrie. Entre os palestrantes estava a historiadora inglesa Juliet Nicolson, a neta da escritora (e amante de Virginia Woolf) Vita Sackville-West.

Alguns desses eventos eram aterrorizantes.

O entretenimento ao vivo a bordo do QM2 muitas vezes trazia de volta memórias vívidas e horríveis de ser forçado por meus avós a assistir por horas programas de variedades na TV, como "The John Davidson Show". Uma noite eu fugi de um musical dedicado às canções de Sting após três de seus maiores sucessos, temendo danos como os do norovírus aos meus receptores de áudio e vídeo.

Uma viagem no Queen Mary 2 é o tipo de coisa que as pessoas colocam em suas listas de coisas para fazer antes de morrer. Não eram poucos os passageiros em nossa travessia que pareciam perigosamente perto de bater as botas. A danceteria do QM2 atraia um público jovem frenético depois da meia-noite. Mas a média de idade em nossa travessia, eu acho, era bem mais de 60 anos. Havia uma abundância de cadeiras de rodas, andadores e bengalas, tantos que se todos tivessem sido jogados ao mar ao mesmo tempo, eles teriam criado um recife artificial.

Pessoas morrem em navios de passageiros. Enquanto eu participava de uma excursão pelos bastidores do navio (esses passeios custam US$ 120 e os bilhetes são escassos), um oficial médico apresentou um necrotério de pequeno porte, com gavetas de metal para quatro corpos. Se for preciso mais espaço, ele disse, sorrindo, sempre há o freezer de sorvete.

O público de navios de cruzeiro sempre pendeu para os mais velhos. Quem mais tem tempo para passar oito dias cruzando um oceano em janeiro? Mas ao concentrar-se tão exclusivamente na classe de aposentados, as virtudes da travessia estão sendo perdidas por uma geração mais jovem.

Você começa a perdoar o Queen Mary 2 por suas sensibilidades deselegantes. Você percebe que trata-se de uma destilação flutuante das inclinações e valores ingleses, um recipiente estanque de nostalgia envelhecida em tonel de carvalho. Ele foi construído para sobrevivência, não velocidade. É um lugar para ter peixe defumado no café da manhã, sopa com Marmite no almoço, chá inglês à tarde e um quartilho de cerveja lager no início da noite. Você é notificado de que "condecorações militares ou outras podem ser usadas nas noites formais". Você pode até mesmo se deparar com um grupo cantando –um que eu achei absurdamente tocante– "My Bonnie Lies Over the Ocean". (Trata-se de uma canção escocesa, mas não importa.)

Um cínico vai apontar que o QM2, lançado em 2004, foi na verdade construído na França. Essa pessoa também poderia notar que o registro do navio, em 2011, foi transferido para as Bermudas, colocando um fim a 171 anos de registros britânicos para navios da Cunard. Ele ou ela vai revelar que, desde 1998, a Cunard é uma subsidiária da Carnival Corp. e que a tripulação do Queen Mary 2 é internacional. Você deve se manter firme e sem emoção diante desses fatos desagradáveis.

O Queen Mary 2 e seus navios irmãos menores, o Queen Victoria (lançado em 2007) e o Queen Elizabeth (2010), viajam praticamente em todos os lugares onde há água: o Extremo Oriente, América Central, Escandinávia e Islândia, Austrália e ilhas do Pacífico, África, pelo Oriente Médio. Você também pode reservar uma turnê mundial que irá mantê-lo a base de caviar –dizem que a Cunard está entre as maiores compradoras individuais do mundo– por três meses.

A travessia transatlântica, no entanto, é o coração das virtudes remanescentes da Cunard.

No inverno, a viagem é de preço relativamente acessível: nossas passagens custaram um total de cerca de US $ 1.500, embora bebidas alcoólicas, tratamentos de spa, internet e outros podem facilmente fazer essa valor dobrar. O QM2 pode já não ser o mais longo, mais alto e mais amplo navio de passageiros existente, mas ainda é o maior transatlântico já construído –navegando ponto a ponto, como para o outro lado do Atlântico, diferente de um navio de cruzeiro, que faz um percurso que termina no ponto de partida. E ele é o único transatlântico em serviço regular entre Southampton e Nova York.

Uma travessia é uma viagem tanto interior quanto exterior. Fotos de cor sépia nas paredes do QM2 retratam os atores, escritores, políticos, aristocratas e playboys que viajavam regularmente durante o auge banhado em champanhe da Cunard, antes da era dos jatos roubar dos transatlânticos sua razão de ser. Você se recorda de serviço da Cunard durante a guerra. Winston Churchill observou que o Queen Mary e o Queen Elizabeth ajudaram a encurtar a Segunda Guerra Mundial em pelo menos um ano, tamanha era sua capacidade de transportar tropas.

  • Michael Kirby Smith/The New York Times

    Vista do por do Sol a partir de um dos decks do Queen Mary 2

Há uma forte tentação, durante seus primeiros dias a bordo do QM2, de ver todo o navio freneticamente em busca de uma amostra de tudo. Leva alguns dias para perceber que os reais prazeres de uma travessia de inverno são os deliberados. Acima de tudo, há a beleza bergmanesca do oceano, mais hipnotizante de fixar o olhar do que uma fogueira.

Você se verá devorando muitos livros, principalmente por estar desconectado (o serviço de internet no QM2 é lento e abusivamente caro). Você vai principalmente ignorar os eventos mundiais, porque o pequeno jornal que o navio imprime e distribui a cada manhã, com artigos selecionados das agências de notícias, é tão otimista e fútil quanto uma edição do "USA Today" editada por cocker spaniels.

Cree passou muitas de suas horas matinais andando pelo convés do navio (três vezes ao redor equivale a aproximadamente 1,5 quilômetro) ou relaxando e lendo no Canyon Ranch Spa. Eu lia, escrevia uma resenha de um livro e passava um bom tempo no final da tarde em uma banheira de água quente ao ar livre no Deck 8, com uma boa visão da popa.

Estava frio lá fora, às vezes nevando, portanto essas banheiras quentes estavam quase sempre vazias. Na primeira noite que eu entrei nelas, sozinho no crepúsculo, com um quartilho de sidra britânica seca na mão, olhando o céu escurecer e o rastro do navio no mar se espalhando para fora, eu estava ciente de que aquele talvez fosse um dos 200 melhores momentos da minha vida.

Graças a Deus eu não tinha serviço de celular, ou eu teria tuitado sobre isso.

Eu avistei um navio menor ao longe, e um trecho de Auden me veio à mente: "Você era um grande Cunarder, eu / Era apenas uma sumaca pesqueira".

Na travessia de inverno na direção leste é difícil não pensar na morte. Eu não quero dizer que eu temia que nosso navio teria o destino do Costa Concordia (rochas), do Titanic (iceberg), do Lusitania (submarino alemão) ou do Edmund Fitzgerald (tempestade). O que quero dizer é que os dias são cruelmente curtos; para acomodar os fusos horários, uma hora é subtraída do relógio do navio a cada dia ao meio-dia. Você pode literalmente sentir o tempo que está sendo drenado de sua cota na Terra. Seus dias são encurtados; você está vivendo na dobradinha da revista "Mad" de Deus.

As refeições, nessa agenda acelerada, chegam mais rapidamente do que seus apetite. A comida é importante a bordo de navios, e o QM2 não é exceção. Há muitos lugares para se alimentar, de um buffet agitado ao lado de um bar que serve um almoço forte de trabalhador braçal a um restaurante Todd English, além do serviço de quarto 24 horas e dois pontos, o Princess Grill e o Queen's Grill, disponíveis apenas para os passageiros do navio com as passagens mais caras.

Eu passei os seis meses anteriores perdendo nove quilos em uma dieta de baixo carboidrato que eu estava fazendo. Eu recuperei quase um terço desse peso de volta enquanto viajava no QM2, para meu desgosto. Eu pensei que estava exercendo moderação, mas acho que tive dificuldade em me abster do crêpe suzette e das fatias finas e salgadas de bacon inglês. Buffets onde você pode comer quanto quiser causam um grande estrago no espírito masculino americano.

Há muitos bares a bordo do QM2. Nós bebíamos toda noite antes do jantar no Commodore Club, abaixo da ponte do navio, onde uma ala inteira do menu de coquetéis é dedicada ao gim e tônica. Nós tomávamos o café da manhã, almoçávamos e jantávamos no maior restaurante do navio, o Britannia, cujo preço estava incluído em nossa passagem.

A comida no Britannia, fora o prato ruim ocasional, foi ótima, especialmente considerando uma operação que prepara muitas milhares de refeições por dia (mas eu ansiava para que o navio lançasse uma rede ao mar de vez em quando para pescar um peixe fresco). O serviço foi excelente, embora os garçons tivessem esse hábito beatnik de remover os pratos antes de todo mundo à mesa terminar sua refeição. A carta de vinhos foi agradavelmente esotérica e repleta tanto de vinhos baratos quanto renomados.

Localização é tudo onde quer que você vá, mas especialmente no Britannia. As mesas de centro, longe das janelas, fazem você se sentir em um Friendly's. A melhor coisa que fizemos foi dar uma gorjeta ao maître em nossa primeira noite, evitando a mesa ruim que nos foi atribuída e assegurando, a cada noite, uma mesa dramática ao lado da janela. Você conhece uma grande quantidade de pessoas no Queen Mary 2. Nossos companheiros de mesa, especialmente –um casal jovem incomum (para um cruzeiro) de fora de Londres– foram ótimos. Nós fomos dançar com eles e eles gentilmente me permitiram derrotá-los certa madrugada no Monopoly (Banco Imobiliário), a versão britânica, no qual a Baltic Avenue é a Whitechapel Road.

Nós comemos uma vez no restaurante Todd English –você paga um extra para jantar lá– onde a comida se sobressai ainda mais do que no Britannia. Mas aqui você tem que sobreviver a níveis perto de tóxicos de presunção e arrogância. Assim que você percebe que os aperitivos incluem algo chamado "Cartas de Amor de Batata Trufada do Todd", você sabe o que esperar, ao modo Nicholas Sparks.

Você lê a biografia de English, impressa no interior. Esta é apenas a primeira sentença: "Um dos mais premiados, respeitados e carismáticos chefs do mundo, Todd English desfruta de um número impressionante de prêmios durante sua carreira notável".

Então você se arrasta para fora para o convés e se atira ao mar.

Eu ainda não mencionei o cassino (eu perdi US$ 75 em duas horas na mesa de vinte-e-um) ou as piscinas, a academia de ginástica, a biblioteca, a livraria ou o fato de que os garçons do QM2 abrem as rolhas de até 600 garrafas de vinho por dia no mar. Eu não mencionei a emoção estranha de ouvir a buzina do navio, um som que David Foster Wallace certa vez comparou, em um navio diferente, a "flatulência dos deuses". Eu não mencionei que a primeira coisa que Cree fez, ao chegarmos em casa e sentindo-se culpada, foi postar um cheque de US$ 20 para a Cunard pela taça de champanhe.

O Queen Mary 2 mantém os vestígios de um sistema de classes. Tem restaurantes, lounges e elevadores em que as massas não podem entrar. Como a Cunard vive de classe, você não pode evitar, a não ser fazer o mesmo. Você se pergunta: viajar no QM2 realmente é uma coisa de classe alta ou é uma noção que a classe média tem de uma coisa que a classe superior faz? Você começa a suspeitar que é a segunda. É muito mais provável você encontrar um vendedor de Des Moines a bordo do QM2 do que um advogado, escritor, estilista de moda ou duque. A Cunard vende a ideia de "luxo" tanto quanto o luxo.

É melhor terminar com sexo –ou com interação humana, de qualquer forma– do que falando de classes. Em nosso primeiro dia no mar, meu amigo Will participou de um encontro de solteiros (ele tem uma bela namorada em casa, mas eu lhe pedi que fosse para o meu artigo). Ele relatou a triste notícia: cerca de 60 mulheres lotavam o evento, todas elas com mais de 65 anos, mas havia apenas um punhado de homens.

Ele também aprendeu um dos segredos abertos de uma certa faixa da indústria de cruzeiros. Muitos desses homens tinham recebido passagem e refeições gratuitas; eles estavam a bordo para atenderem as mesas como anfitriões e dançar com mulheres solteiras. Em nossas noites finais no QM2, nós víamos essas mulheres e seus parceiros de dança. Todos pareciam que fariam a viagem de novo sem pestanejar.